Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

cidadania

Uma república a ser revelada

Grupo de estudos une mineiros, cariocas e paulistas que esmiúçam a cena real da República Brasileira

Uma imersão na tradição republicana e em conceitos caros a ela, como os de liberdade, participação, igualdade, interesses públicos e privados, que permeiam a política e a vida cotidiana, está permitindo um novo olhar sobre o Brasil de agora. O estímulo parte do grupo de estudos Repúblicos, nome que, a partir de uma brincadeira entre seus participantes, passou a intitular os pesquisadores da UFMG e de outras instituições universitárias do Rio de Janeiro e de São Paulo, envolvidos, desde 1998, num projeto que pretende aguçar a compreensão do momento e o debate na busca de saídas e estratégias políticas para o País. Isso sem, contudo, estar vinculado a qualquer organismo de representação além da academia.

Denise Miranda

O Repúblicos é um grupo que traduz, no ecletismo de sua formação e proposta, a marca utópica da transdisciplinaridade almejada pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT), o organismo na UFMG que abarcou o projeto em 2000, incentivando uma produção nada tradicional a partir da união de pesquisadores de áreas como filosofia, história, letras, ciência política e sociologia. Assim como, em outros tempos, os modernistas se abraçaram e deram uma nova visão para a arte no País, o Repúblicos quer, ao resgatar com diversidade de olhares o que se convencionou chamar de tradição republicana, ampliar e atualizar a discussão que, em diferentes instâncias do cotidiano brasileiro, vem sendo reclamada.

A idéia de formação do grupo nasceu com os professores Newton Bignotto, do departamento de Filosofia, e Heloísa Starling, do de História. “Queríamos juntar diferentes áreas para pensar o Brasil”, lembra Heloísa, ressaltando que o grupo se articula intencionalmente de maneira variada, exatamente para, ao tomar como eixo uma matriz política (o republicanismo), proporcionar uma discussão diferenciada acerca dos múltiplos problemas sobre os quais se debruça.

Juntaram-se no Repúblicos, além de Heloísa, Bignotto e Wander de Melo Miranda, da UFMG, os professores Renato Janine Ribeiro, Olgária Chain Féres Matos e Sérgio Cardoso (Universidade de São Paulo); Marcelo Gantus Jasmin (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); José Murilo de Carvalho (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Luiz Werneck Vianna e Maria Alice Rezende de Carvalho (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).

Encontros de estudos do grupo e a realização de cursos, workshops e seminários abertos deram origem ao livro Pensar a República (Editora UFMG), em 2000. O ecletismo do grupo e, por isso, sua forma peculiar de tratar o assunto estão estampados nas quase 200 páginas da publicação. São artigos que transitam da compreensão de concepções clássicas da tradição republicana em si até a literatura, com o intuito de investigar, na produção de nossos escritores, a herança republicana, ou a falta dela, no processo de construção do imaginário político brasileiro.

Os pesquisadores enveredaram-se por distintos caminhos para situarem e problematizarem a realidade nacional, embasados numa tradição do pensamento político que tem raízes na Grécia. “Sabemos que o Brasil nunca teve uma experiência republicana plena, mas recusamos uma análise do déficit, do que falta ao País. Queremos tratar do que o Brasil é”, explica Bignotto. Para ele, a pluralidade de idéias emanadas do Repúblicos tem facilitado a inserção de um novo debate no campo da ciência brasileira, inspirando, por exemplo, outro grupo de pesquisa em torno do tema na Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs). Mais do que isso. Segundo Heloísa, já é possível identificar a influência da discussão renovada no âmbito da política nacional. “A presença de intelectuais dá maior legitimidade a este tipo de debate”, acredita ela.

O grupo se mostra fecundo em vários aspectos, estimulando iniciativas que ampliam os objetivos de sua constituição. Por exemplo, a UFMG fomentou a criação, no departamento de História, do Projeto Repúblicos, parte responsável por diferentes pesquisas e tarefas que dão novas dimensões às intenções iniciais do programa “guarda-chuva”.

Os famosos arquivos do antigo Dops, símbolo da opressão política no País, durante a ditadura militar, estão depositados no Arquivo Público Mineiro, mas serão revelados através do seu mapeamento pelo Projeto Repúblicos.

Também o acervo, criado a partir da coleção de documentos recolhidos durante a atuação da Agência de Inteligência (braço do antigo Serviço Nacional de Inteligência) na UFMG, e, hoje, pertencente à Instituição, está sendo esmiuçado. Sobre ele haverá uma grande exposição. São documentos que foram guardados a duras penas e mostram a presença nefasta do regime autoritário no dia-a-dia da Universidade. A UFMG é a única universidade federal a possuir semelhante coleção. O Museu da República, no Rio de Janeiro, ofereceu-se para sediar a exposição arquitetada pelo Projeto Repúblicos. O mesmo Museu, em convênio com a Petrobras, patrocina o República On-Line, um site (www.republicaonline.org.br) que reúne informações para atender demandas variadas, em especial de professores e alunos dos ensinos fundamental e médio.

O Projeto Repúblicos engloba ainda o Decantando a República, pesquisa que busca identificar, nas canções brasileiras, a tradição republicana. Em parte, o trabalho é realizado junto com o Museu Histórico Abílio Barreto. Esse será também o título do próximo livro do Repúblicos, fruto da interação do grupo com pesquisadores de outros estados. Heloísa Starling ressalta que o Repúblicos incitou, também, a aquisição, pela Biblioteca Central da UFMG, de uma vasta bibliografia sobre a República. Essa movimentação, diz Heloísa, reforça a convicção de que a UFMG está criando condições para se tornar um centro de referência sobre o republicanismo.

Denise Miranda

Dividendos à cidadania

Cursos da UFMG orientam sobre participação política e aplicação de recursos municipais

Realidade em dezenas de cidades brasileiras, o Orçamento Participativo (OP) tornou-se um dos instrumentos de políticas públicas mais conhecidos no País e tem sido referência no mundo para diferentes estudiosos que analisam formas de democratização dos orçamentos municipais. Em São Paulo, o OP está no início, pois só foi implantado com a eleição da prefeita petista Marta Suplicy, em 2000. Da construção desse processo faz parte o Departamento de Ciências Políticas da UFMG (DCP), responsável por cursos de capacitação de representantes da população em diferentes instâncias de decisão do OP.

“Poucas políticas participativas no mundo despertam tanto interesse como o OP”, diz o cientista político Leonardo Avritzer, autor de várias publicações sobre o assunto. Segundo ele, o Orçamento Participativo tem demonstrado, na prática, desde a sua estréia em Porto Alegre, em 1990, ser um mecanismo eficiente de distribuição de investimentos, privilegiando populações mais carentes. Ele destaca também que o OP representa maior garantia de que os investimentos alocados serão realmente realizados. “Raramente se vêem obras do OP paradas ou que não sejam feitas. Político nenhum quer isso”, salienta Avritzer, ressaltando que a dinâmica do Orçamento Participativo induz a maior compromisso do administrador, pois a população, além de decidir pela obra, participa de sua fiscalização.

Em 2002, Avritzer coordenou, na capital paulista, cursos de capacitação destinados aos conselheiros e delegados do OP (que são eleitos, em assembléias regionais, como representantes da população). “São pessoas que queriam participar, mas que desconheciam o processo, que realmente é complexo”, conta o professor. De maio a setembro, período em que o OP é concretizado, foram realizados dez cursos, com mil alunos, que discutiram temas ligados não só à formulação do OP, mas também ao conceito de democracia, de público e privado, de direitos do povo, de ações e políticas comunitárias e também à realidade social de São Paulo.

A idéia central era oferecer aos integrantes do curso embasamento tanto para entender o funcionamento do OP quanto para discutir e opinar sobre o tipo de prática do qual estavam participando. Além disso, afirma Avritzer, a Prefeitura de São Paulo queria conhecer melhor em que “pé” se encontrava a rede que atua nas políticas participativas na cidade. O associativismo é uma prática que reflui ou que é reforçada de acordo com tais políticas participativas no município, explica o professor do DCP, lembrando que, em São Paulo, há muito tempo, o poder político se reveza entre o petismo e o malufismo, processo em que um faz e o outro desfaz. “Então, não se conhecem muito bem as condições dessa participação em políticas públicas”, analisa.

Os cursos foram ministrados com a participação não só do DCP mas também de alunos da pós-graduação em Direito e do Teatro Universitário (TU). Em meio aos cursos, houve dois seminários internacionais sobre democracia participativa. “Mais de 70% dos integrantes afirmaram que os cursos superaram as expectativas”, diz Avritzer, destacando que o OP atrai muitas atenções, porque é uma experiência tipicamente brasileira, de sucesso e que está em expansão. Atualmente, 103 cidades optaram pelo OP (cerca da metade delas dirigidas pelo PT). Há uma experiência de OP em Saint-Denis, na França. No mundo, calcula ele, mais de 20 teses de doutorado tratam do Orçamento Participativo.

A primeira experiência de OP, nos moldes atuais, foi realizada em Porto Alegre (RS), durante o governo do então prefeito Olívio Dutra (PT), que se apropriou de algumas práticas já existentes e deu a elas um formato petista. Lá, relembra Avritzer, o OP chegou a representar 14% dos recursos destinados a investimentos. Depois do Plano Real, esse índice baixou para 7%, como uma conseqüência, segundo o professor, das dificuldades financeiras vividas pelos municípios. “O OP acaba estimulando a discussão de diferentes questões, desde corrupção até desperdícios em obras”, assinala.

O OP, afirma Avritzer, tem demonstrado ser um instrumento positivo de distribuição de recursos, pois a maior parte dos investimentos do montante é alocada em regiões de menor Índice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU). De acordo com levantamento feito por um dos alunos do doutorado do DCP, Roberto Rocha Pires, entre 1994 e 2002, os investimentos feitos em áreas de menor IQVU são de quatro a dez vezes maiores, se comparados com áreas onde o OP também foi aplicado, mas o IQVU é maior. Os números do OP em Belo Horizonte indicam, ainda, que boa parte dos recursos foi destinada para vilas e favelas, ao longo dos sete anos em que o OP se tornou realidade na Capital.