Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº. 6- março 2005

Editorial

Entrevista
Ministro Tarso Genro

Pesquisa e desenvolvimento
A hora e a vez dos Parques Tecnológicos

O Parque Tecnológico de Belo Horizonte
Mariana de Oliveira Santos e Francisco Horácio Pereira de Oliveira

Ciência e Tecnologia
Da "prateleira" da academia para o mercado

Propriedade intelectual e transferência tecnológica
Sérgio Oliveira Costa e Juliana Crepalde

Educação
Celeiro pedagógico

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico
Magda Becker Soares

Inclusão
Os esquecidos da Terra

Patrimônio
Ontem, hoje e sempre

Contando pedra e cal

Saúde
Rede virtual, saúde real

Excelência na prática médica
Ênio Pietra

Saúde Pública
Homem/bicho/homem,
a cadeia alimenta
r

A multiplicidade do Hospital Vterinário
Cleuza Maria de Faria Rezende

Arte e Cultura
Quatro festivais décadas

O Festival de Inverno da UFMG
Evandro José Lemos da Cunha

UFMG Diversa
Expediente

UFMG em números

Outras edições

 

Arte & cultura

Quatro festivas décadas

O Festival de Inverno da UFMG consolidou-se como locus de reflexão e experimentação

Marcelo Kraiser

A tumultuada passagem do grupo teatral norte-americano Living Theatre por Ouro Preto, no início da década de 1970, sugere uma boa imagem da atmosfera desses anos, os primeiros do Festival de Inverno da UFMG. Atraído pelo evento, o grupo de vanguarda teatral, que visitava o Brasil a convite do Teatro Oficina, de São Paulo, depois de alguns meses vivendo em Ouro Preto, acabou preso e deportado pela ditadura militar.

“Eram anos de muita repressão, mas também de muita criação e experimentação artística”, relembra José Adolfo Moura, professor aposentado da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG. Adolfo, que fez parte do grupo de jovens professores que, por conta própria, organizou um Festival de Artes em 1967, rememora que o motivo da prisão do grupo ninguém nunca soube direito – se foi por droga, nudismo, contestação política... “O certo é que o governo militar brasileiro queria mostrar sua força e se ver livre das idéias libertárias do grupo.”

E, se possível, do Festival. “O historiador Francisco Iglésias dizia que era surpreendente que um festival de vanguarda pudesse ter surgido durante um período tão repressivo da história brasileira”, afirma o professor da EBA, hoje aposentado, Silvino José de Castro, autor de uma tese defendida no Emerson College, em Boston (EUA), que resultou em um documentário sobre a história do Festival. “Ele funcionou mesmo como uma válvula de escape para aqueles anos de opressão que vivíamos”, depõe a pianista e professora Berenice Menegale, que integrou o grupo pioneiro dos primeiros festivais.

Nova mentalidade

Marcelo Kraiser

Consagrada arte-educadora, Menegale foi criadora da Fundação de Educação Artística e, em 1974, entrou para a UFMG. Na sua opinião, “o Festival conseguiu alterar a mentalidade reacionária da Escola de Música”. No entanto, pelo ideal artístico, tudo valia a pena, mesmo diante das dificuldade para realizar evento tão ambicioso. “Os primeiros Festivais foram feitos com muita pouca verba. Os recursos vinham da Universidade, do Ministério da Educação e da Funarte”, revela Berenice Menegale. Valeu a pena, ainda que nem tudo tenha saído como queriam os pioneiros: “A integração de todas as artes foi uma utopia nunca alcançada no Festival. A não ser nas exceções – Giramundo, por exemplo –, as artes sempre se apresentaram de forma isolada”, opina a pianista.

Sim, os tempos eram outros e, apesar da ditadura escancarada, José Adolfo só guarda boas lembranças desses anos e, principalmente, de um ilustre cidadão de Ouro Preto, fundamental para que o Festival pudesse ganhar força no início, já que a população da cidade não via com bons olhos “aqueles cabeludos”. “Foi o professor da Escola de Farmácia da UFOP Vicente Trópia. Pouca gente sabe disso, mas sem ele talvez o Festival nem tivesse vingado”, afirma Adolfo, que ressalta, ainda, a grande mudança ocorrida na Escola de Música em decorrência do evento. “Antes do Festival, a Escola de Música tinha uma cara muito conservadora, desatualizada de tudo o que estava acontecendo na música contemporânea”.

Anos paranóicos

“Comecei a freqüentar o Festival em 73”, rememora o professor da Escola de Belas Artes Mário Zavagli. “Eram anos difíceis, com repressão forte e prisões sistemáticas.” Zavagli conta que uma das táticas da ditadura consistia em matricular policiais nos cursos: “A gente sabia que era espionado dentro das oficinas. Um clima de completa paranóia. Quando tínhamos que conversar um assunto importante, pegávamos o carro e ficávamos passeando pela cidade”.

Marcelo Kraiser

Essa paranóia durou até, pelo menos, o final dos anos 1970. “Eu lembro que, lá por volta de 1978-79, estive com dois amigos participando do Festival. Uma noite, minha amiga interessou-se por um rapaz que, mais tarde, abriu o jogo para gente e disse que era do SNI”, completa o professor da Escola de Belas Artes Fabrício Fernandino, atual coordenador do Festival.

A ditadura ficaria para trás e, hoje, quase 40 anos depois, o sucesso do evento pode ser constatado tanto na multiplicação de cursos e oficina que o Festival oferece todos os anos, como nos importantes “filhotes” que o primeiro Festival de Inverno brasileiro acabaria gerando – o Grupo Galpão, o Uakti e Grupo Corpo são apenas os nomes mais conhecidos – e na proliferação de novos festivais espalhados em todo o Brasil. “Atualmente existem 47 festivais culturais no País”, afirma Fabrício.

Os filhotes

Marcelo Kraiser

“Quando penso no Festival, penso sempre na Berenice Menegale, uma das suas fundadoras. Essa figura maravilhosa, com grande dom para aglutinar pessoas”, afirma o flautista Artur Andrés, professor da Escola de Música da UFMG e membro fundador do Uakti-Oficina Instrumental.

Andrés, que começou a participar do Festival na década de 1970, com 16 anos, esclarece que, embora o Uakti não tenha surgido lá, o grupo se formou na Fundação Artística e um dos primeiros espetáculos ocorreu dentro da programação do evento. “Acho que a maior contribuição do Festival talvez tenha sido a de possibilitar a experimentação artística para além das metodologias acadêmicas. O Festival mudou a cara da Escola de Música que, até então, não era aberta nem para a música popular nem para a música contemporânea”, finaliza Artur.

Fundado em Belo Horizonte, em 1975, o Grupo Corpo também tem seu início relacionado ao Festival de Inverno. “Ter feito a oficina, dentro do Festival com o bailarino argentino Oscar Araiz foi fundamental para o rumo que minha carreira acabou tomando”, admite Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo, que, também, participou de oficinas de mímica. “Ali percebi que a dança estava entrando de forma definitiva na minha vida”. Pederneiras, que, na década de 1980 ainda voltou a freqüentar o Festival, agora como professor de uma oficina, guarda boas lembranças daqueles primeiros anos: “O Festival, para mim, foi mesmo fundamental”.

O primeiro espetáculo do Corpo, Maria Maria, estrondoso sucesso que percorreu 14 países e foi dançado no Brasil de 1976 até 1982, foi coreografado por argentino Oscar Araiz. Esse espetáculo, que teve música de Milton Nascimento com letra de Fernando Brant, não foi o único trabalho do argentino – O Último Trem, também de Araiz, consolidou a primeira fase do Grupo Corpo.

Outra turma que tem seus primórdios associados ao do Festival de Inverno é o Grupo Galpão. A trupe tem uma relação antiga com o Festival. “O Grupo surgiu de uma oficina promovida em 1982”, relembra um de seus fundadores, o ator Eduardo Moreira. “Nos encontramos nas oficinas de teatro dos alemães Kurt Bildstein e George Froscher, do Teatro Livre de Munique, que trabalhavam com o teatro de rua.” Da experiência da oficina com o grupo alemão resultou a primeira montagem do grupo – A Alma Boa de Setsuan, de Bertolt Brecht. “Somos um dos filhotes do Festival”, afirma Moreira.

Marcelo Kraiser

Atualidade

Entretanto, para além dos anos heróicos, o Festival de Inverno da UFMG consolidou uma trajetória que o projeta, nos dias de hoje, como a mais importante iniciativa cultural no campo da extensão universitária brasileira. Por suas oficinas e cursos – nas áreas de Artes Cênicas, Artes Plásticas, Artes Visuais/Mídia Arte, Literatura e Cultura, Música e Projetos Especiais –, já passaram milhares de inscritos e, se somados os espectadores e os participantes de eventos que vem promovendo – como shows e exposições – esse número chega a quase um milhão.

O evento é realizado anualmente, no mês de julho, sempre mantendo sua proposta fundamental de ser um espaço de iniciação, aprofundamento, experimentação e pesquisa de novas linguagens artísticas. Suas atividades são destinadas a profissionais das áreas de Artes, Letras e Comunicação, além de professores e estudantes.

Em suas 36 edições, o Festival esteve presente em Ouro Preto, Diamantina, São João del-Rei, Poços de Caldas e Belo Horizonte. Em 2000, retornou à Diamantina, a segunda cidade mineira a ser reconhecida, pela Unesco, como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Quando o assunto é Festival, o professor Fabrício Fernandino, Coordenador de Ação Cultural, órgão da administração da UFMG que organiza o evento, não esconde seu entusiasmo. Ele costuma dizer que, nem mesmo acabou uma edição já está envolvido com a organização da próxima. “Atualmente, estamos organizando a 37a edição, que terá como tema Diálogos Possíveis”.

Para Fabrício, a contemporaneidade mostra que, com o advento da globalização, pode-se observar, nos vários setores da sociedade, com maior intensidade, o fenômeno da interatividade, facilitado pelas redes e malhas transdisciplinares. “Com a cultura, a arte e o conhecimento, não poderia ser diferente. A criatividade, naturalmente exercitada pela prática e pela reflexão sobre a arte, tem por atribuição capacitar os participantes para a busca de novas fronteiras, novos formatos, e sensibilizá-los para a aquisição de conhecimentos de ponta”.

Fabrício acredita que só a arte possibilita esses vôos vigorosos e audazes. Ao propor uma prática de relacionamentos transdisciplinares, que articulam novas linguagens, o Festival de Inverno da UFMG propicia um enorme ganho para os valores artísticos e estéticos e para o enriquecimento das possibilidades de expressão humana. “A edição deste ano que vem, pretende privilegiar, a partir de diálogos diferenciados e possíveis, um patamar inovador na produção artística”, finaliza ele.

Marcelo Kraiser