Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº. 6- março 2005

Editorial

Entrevista
Ministro Tarso Genro

Pesquisa e desenvolvimento
A hora e a vez dos Parques Tecnológicos

O Parque Tecnológico de Belo Horizonte
Mariana de Oliveira Santos e Francisco Horácio Pereira de Oliveira

Ciência e Tecnologia
Da "prateleira" da academia para o mercado

Propriedade intelectual e transferência tecnológica
Sérgio Oliveira Costa e Juliana Crepalde

Educação
Celeiro pedagógico

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico
Magda Becker Soares

Inclusão
Os esquecidos da Terra

Patrimônio
Ontem, hoje e sempre

Contando pedra e cal

Saúde
Rede virtual, saúde real

Excelência na prática médica
Ênio Pietra

Saúde Pública
Homem/bicho/homem,
a cadeia alimenta
r

A multiplicidade do Hospital Vterinário
Cleuza Maria de Faria Rezende

Arte e Cultura
Quatro festivais décadas

O Festival de Inverno da UFMG
Evandro José Lemos da Cunha

UFMG Diversa
Expediente

UFMG em números

Outras edições

 

Saúde pública

Homem/bicho/homem, uma cadeia alimentar

Pesquisa veterinária assegura produtividade dos rebanhos e qualidade aos produtos de origem animal

Ninguém põe em dúvida o fato de que o êxito alcançado pelas exportações brasileiras em 2004, que ultrapassaram U$ 90 bilhões, está diretamente relacionado à revolução tecnológica experimentada pelo setor agropecuário na última década. Se aceitamos a premissa de que só quem detém o conhecimento pode alcançar patamares mais altos de desenvolvimento, é inevitável reconhecer como fundamental o papel das instituições de pesquisa, especialmente das universidades brasileiras, nesse avanço.

Maria do Céu Diel

E, no campo das Ciências Agrárias, a UFMG tem muito o que dizer, em especial graças à atuação da Escola de Veterinária, hoje, reconhecidamente, um dos mais respeitados centros de pesquisa do País. Desde o início de sua história, a pesquisa realizada na Escola de Veterinária sempre manteve estreito vínculo com as demandas da pecuária nacional e regional – seja a de corte, seja a leiteira – e, não por acaso, seu curso de doutorado em Ciência Animal foi recentemente avaliado com a nota máxima pela Capes.

“O curso de Veterinária, criado em 1926, esteve sempre voltado para a pesquisa do bovino”, explica o professor Élvio Carlos Moreira, pesquisador sênior e um dos maiores especialistas em febre aftosa no Brasil. “Basicamente, eram três os objetivos: em primeiro lugar, diminuir o intervalo de reprodução dos animais – uma vaca brasileira, na maioria dos casos, só dava cria uma vez por ano, uma média muito baixa; além disso, era preciso melhorar o desenvolvimento ponderal dos animais, isto é, aumentar o tamanho médio do rebanho; e, por último, era necessário aumentar a produção de leite por animal, que também era muito pequena.

Moreira conta que, entre as inúmeras contribuições trazidas pela Escola, ao longo de seus mais de 70 anos, uma das mais significativas foi a participação de seus pesquisadores no Programa de Erradicação da Febre Aftosa no País. “Na época em que propusemos o projeto ao governo federal, falava-se apenas em controle da doença”, lembra o pesquisador, que participou ativamente da implementação do projeto proposto em 1980. “Fomos nós que, pela primeira vez, utilizamos a palavra erradicação no texto apresentado ao Ministério da Agricultura.”

Provocada pelo aftovírus, embora não implique risco de morte entre humanos, a febre aftosa causa sérios prejuízos econômicos e é umas das mais temidas doenças entre os produtores. O animal doente apresenta aftas na boca e na gengiva, feridas nas patas e nas mamas, fica febril, tem dificuldade para pastar e, assim perde peso e produz menos leite.

Para tentar acabar com a doença, Moreira conta que foi estabelecida, na Escola, uma nova metodologia, que propunha o controle diferenciado, de acordo com os circuitos de produção animal. “Não existe uma maneira invariável para se acabar com a doença em todo o território nacional”, explica Élvio Moreira. “Cada região requer um modo de tratamento diferente.”

O Brasil foi, então, dividido em cinco regiões: Sul, que, além dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, compreende as fronteiras com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai; Centro-Sudeste; Centro-Leste; Oeste; e, finalmente, Norte. “A grande revolução do nosso projeto foi deixar claro que a solução não se daria se cada Estado da Federação cuidasse apenas do seu quinhão. O projeto foi inovador, porque conseguimos provar que o problema só seria resolvido com uma atuação em nível regional”, explica Élvio.

De baixo para cima

Maria do Céu Diel

A vacinação dos rebanhos começou, então, de “baixo para cima”, ou seja, pela Região Sul. Por motivos óbvios: primeiro, porque as fronteiras brasileiras sempre representaram, e ainda representam, um grande empecilho a ser vencido; depois, porque a concentração de gado mais nobre, no Brasil, se encontrava nessa região. “Um dos pontos importantes do projeto levava em conta o trânsito de animais pelo País. A Região Sul não recebe animais oriundos de outras partes do Brasil; o fluxo se dá, pois, em sentido contrário”.

Quase 20 anos depois de começar a ser implementado, o projeto de erradicação da aftosa é uma das grandes vitórias da pecuária nacional. Segundo dados de 2002, do Ministério da Agricultura, apenas dois circuitos pecuários brasileiros ainda não estão livres da febre aftosa: o Norte e Nordeste. Cerca de 77% do rebanho bovino brasileiro está livre de febre aftosa, graças à vacinação; e o Estado de Santa Catarina já recebeu o certificado da Organização Internacional de Epizootias (OIE) como área livre da doença, sem vacinação.

Para o governo, que pretende erradicar a febre aftosa em todo o País, em 2005, o pesquisador da UFMG manda um recado: “Isso só será possível se realizarmos uma operação conjunta com os países fronteiriços. O País precisa se conscientizar de que pagar a vacinação de todo o rebanho da Bolívia, por exemplo, é excelente negócio para o Brasil”.

Vigilância sanitária

Além do combate à aftosa, a Escola de Veterinária desenvolve importantes pesquisas para acabar com outras duas doenças que, ainda, representam uma ameaça à pecuária nacional: a brucelose e a tuberculose. O professor do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva Andrey Pereira Lage é um dos membros do grupo de trabalho que elaborou a Proposta Nacional de Combate e Erradicação da Brucelose e Tuberculose.

“O último número que retrata nacionalmente a situação da brucelose bovina foi apurado em 1975: a Região Sul teve 4,0% de animais soropositivos; a Sudeste, 7,5%; a Centro-Oeste, 6,8%; a Nordeste, 2,5%; e a Norte, 4,1%”, afirma Lage. Depois disso, foram feitos levantamentos esporádicos, apenas em alguns Estados. “Essas pesquisas revelaram pequenas alterações: no Rio Grande do Sul, o número caiu de 2,0%, em 1975, para 0,3% em 1986; em Santa Catarina, passou de 0,2%, em 1975, para 0,6% em 1996; em Minas, passou de 7,6%, em 1975, para 6,7% em 1980.”

Segundo Lage, os dados de notificação oficial indicam que a prevalência de animais soropositivos em todo o País, no período de 1988 a 1998, se manteve entre 4% e 5%. Em Minas, único estado brasileiro a manter um programa permanente de vacinação contra a brucelose, esse índice despencou para algo em torno de 1%. Surpreso com a maneira algo displicente com que a questão vem sendo tratada em algumas regiões, Andrey Lage dispara: “É preciso que todo o País se mobilize contra a doença. Tenho observado um ligeiro, mas constante, crescimento da doença em certos pontos do Brasil. A brucelose poderá se transformar em um problema sério, se toda a sociedade não se mobilizar”.

Já os dados oficiais sobre a tuberculose bovina indicam uma média nacional de 1,3% de animais infectados no período de 1989 a 1998. Levantamento realizado em 1999, no Triângulo Mineiro e nas regiões do centro e do sul de Minas Gerais, quando se pesquisou cerca de 1.600 propriedades e de 23.000 animais, estimou o número de animais infectados em 0,8%. A mesma pesquisa detectou 5% propriedades com animais contaminados, sendo que esse valor subiu a 15% nas propriedades produtoras de leite com algum grau de mecanização da ordenha e de tecnificação da produção.

Diferentemente da brucelose, para a qual já existe vacina desde a década de 1930, para a tuberculose ainda não foi desenvolvida uma vacina específica. Contudo, nossos pesquisadores não estão inativos. “Participamos da avaliação de uma vacina contra tuberculose bovina em conjunto com a Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto. Os primeiros resultados têm sido bastante promissores”, afirma Andrey Lage.

O leite das crianças

Maria do Céu Diel

Se foi significativa a contribuição da Veterinária para o aumento da produtividade da pecuária de corte, para a pecuária leiteira a importância do trabalho desenvolvido pela Escola não foi menor. “Minas Gerais é responsável por 30% da produção nacional de leite, produzindo, aproximadamente, 6 bilhões de litros anuais, o que faz do Estado o maior produtor brasileiro”, revela o professor Fernando Enrique Madalena.

Professor do departamento de Zootecnia da Escola de Veterinária, Madalena chegou ao Brasil na década de 1970, para trabalhar na Embrapa-Leite, de Juiz de Fora e desenvolver o Projeto F1, cujo objetivo era realizar cruzamentos genéticos que resultassem em variedade de maior produtividade leiteira. “Como a produção de leite tropical não pode ser baseada nem na raça Zebu pura, de baixa produção, nem nas raças européias, que não se adaptam bem ao clima, havia a necessidade de um esquema prático – e viável financeiramente – de cruzamento entre elas”, explica o professor.

Com a vinda do professor Madalena para a Escola de Veterinária da UFMG, a pesquisa da Embrapa teve seqüência, contando, então, com a parceria do Departamento de Zootecnia. O resultado foi um animal mais forte e com maior produtividade, tecnicamente denominado F1 e popularmente conhecido como “girolanda” ou “guzerolanda”, dependendo da variedade de zebu cruzada com o gado holandês . “A produção e comercialização do gado leiteiro F1 continua com desenvolvimento firme, num mercado crescente não apenas no Brasil mas também em outros países”, comemora o pesquisador.

A prioridade das pesquisas voltadas para a pesquisa leiteira na Escola de Veterinária encontram bom exemplo no Laboratório de Análise da Qualidade do Leite, outra importante iniciativa da Universidade na área, confirma o professor Roberto Baracat de Araújo, diretor da Escola. “O Laboratório é um projeto prioritário dentro na Veterinária”, afirma ele.

Baracat explica que, de acordo com o Ministério da Agricultura, a partir de julho de 2005, todo o leite recebido nas indústrias deverá ser obrigatoriamente analisado. Essa obrigatoriedade será exigida, inicialmente, nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste e vai valer para o resto do País, com exigências cada vez maiores, até se alcançar a qualidade do leite de países com níveis de excelência nesta área. “Assim, a demanda de serviços de nosso Laboratório está só no início”, esclarece Baracat.

Já o professor Leorges Moraes da Fonseca, coordenador desse Laboratório, revela que, hoje, são analisadas, aproximadamente, 17.000 amostras mensalmente. “Essas amostras são recebidas de diversos clientes como – Nestlé, Itambé, Cotochés, Embaré e Cemil. O Laboratório trabalha com sistema informatizado integrado e com etiqueta de códigos de barra. A análise é feita em, no máximo, 48 horas e o resultado emitido em, até, 24 horas após o término das análises.

Produtores

Maria do Céu Diel

Quando chega ao Laboratório, o leite cru é submetido a cinco tipos de análise: composição – teores de gordura, proteína, lactose, sólidos totais e extrato seco desengordurado; contagem bacteriana – que diagnostica a qualidade higiênica do leite desde a ordenha até a chegada na indústria; índice crioscópio – que estima a quantidade de água adicionada de forma fraudulenta; detecção de resíduos inibidores e antibióticos; e, finalmente, contagem de células somáticas – que verifica se há ocorrência de mastite nos rebanhos.

“Como essa análise será obrigatória a partir deste ano, aos poucos, o produtor de leite vai-se conscientizando da importância e da necessidade da análise do produto”, afirma a presidente da Associação de Criadores do Centro-Oeste Mineiro, Maria Ângela Junqueira. Segundo ela, o Laboratório de Qualidade do Leite da UFMG, que, em abril de 2004, firmou um convênio com a Associação, foi fundamental para o crescimento da produção. “Uma ferramenta de trabalho indispensável”, argumenta a produtora.

Embora todas as análises sejam fundamentais para a melhora da qualidade do leite, o professor Leorges explica que, delas, ainda se podem extrair dados complementares. Por exemplo, por meio dos testes, foi possível constatar que a ocorrência de mastite no rebanho está diretamente associada ao aumento da produção: “A mastite é uma inflamação do úbere da vaca que resulta em grandes perdas tanto na quantidade quanto na qualidade do produto. Ela pode levar a uma diminuição dos teores de caseína do leite e, como conseqüência, interferir na produção de queijos em nívei considerável, muitas vezes, reduzindo-o a cifras próximas de 10%”.