Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº. 6- março 2005

Editorial

Entrevista
Ministro Tarso Genro

Pesquisa e desenvolvimento
A hora e a vez dos Parques Tecnológicos

O Parque Tecnológico de Belo Horizonte
Mariana de Oliveira Santos e Francisco Horácio Pereira de Oliveira

Ciência e Tecnologia
Da "prateleira" da academia para o mercado

Propriedade intelectual e transferência tecnológica
Sérgio Oliveira Costa e Juliana Crepalde

Educação
Celeiro pedagógico

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico
Magda Becker Soares

Inclusão
Os esquecidos da Terra

Patrimônio
Ontem, hoje e sempre

Contando pedra e cal

Saúde
Rede virtual, saúde real

Excelência na prática médica
Ênio Pietra

Saúde Pública
Homem/bicho/homem,
a cadeia alimenta
r

A multiplicidade do Hospital Vterinário
Cleuza Maria de Faria Rezende

Arte e Cultura
Quatro festivais décadas

O Festival de Inverno da UFMG
Evandro José Lemos da Cunha

UFMG Diversa
Expediente

UFMG em números

Outras edições

 

Patrimônio

Ontem, hoje e amanhã

Pesquisas acadêmicas e projetos de extensão defendem nossa memória cultural

Maria do Céu Diel

O Brasil tem uma tradição relativamente recente de preservação de seu patrimônio histórico, artístico e cultural. Somente na década de 1930, com o mineiro Rodrigo Mello Franco de Andrade e por inspiração do poeta, escritor e pesquisador paulista Mário de Andrade, foi criado o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), cujas primeiras iniciativas se concentraram no tombamento de nossos sítios de valor artistico-cultural, como Ouro Preto.

De lá até hoje, a historia da luta pelo patrimônio percorreu longos caminhos, às vezes tortuosos, mas que apontam na direção de uma consciência cada vez mais aguda sobre a necessidade de preservação de nossas raízes culturais, sejam elas materializadas nos bens imóveis – o chamado patrimônio de “pedra e cal” –, sejam elas costituídas de bens intangíveis, representados pelos usos e costumes tradicionais de nosso povo.

Na UFMG, inúmeras iniciativas nesse sentido podem ser registradas ao longo da história da Universidade, com destaque para o trabalho pioneiro dos professores da Escola de Arquitetura Sylvio de Vasconcelos e Suzy de Melo, já falecidos, que legaram importantes contribuições em forma de textos, mas são lembrados, principalmente, por sua atuação pedagógica e militante em favor da causa de nosso patrimônio.

Restaurando o passado

Em 1978, foi dado, na UFMG, um passo gigantesco no sentido da consolidação dessas idéias e experiências, com a criação do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor).

Vinculado à Escola de Belas Artes (EBA), o Cecor desenvolve pesquisas, estudos e trabalhos de conservação e restauro que compreendem desde a pintura de cavalete a escultura policromada e obras sobre papel, além de atuar no ensino, na pesquisa, na preservação do patrimônio e, conseqüentemente, na formação de especialistas em conservação e restauração de bens patrimoniais. Para suas atividades, o órgão dispõe de um Laboratório de Ciência da Conservação, o mais bem equipado do gênero em toda a América Latina.

Por sua importância e, especialmente, pela qualificação de seus quadros, o Cecor tornou-se, em pouco tempo, um centro de referência para trabalhos de conservação e restauração, que atende uma clientela oriunda de todas as partes do Brasil e, até mesmo, do exterior. A par disso, oferece cursos – como o de Conservação e Uso de Coleções –, aberto, inclusive, a alunos da América Latina. E desenvolve inúmeros projetos – entre eles, o de Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos.

“Convencer sociedade e autoridades da necessidade de se criar uma ‘cultura da preservação’ é tão importante quanto a restauração das obras”, afirma o conservador e restaurador Mário Sousa Júnior, do Cecor. “Que adianta restaurar uma obra para depois deixá-la exposta novamente a condições adversas? É preciso que as pessoas recebam uma educação patrimonial e, dessa maneira, ajudem na preservação do patrimônio.”

Contudo, segundo o restaurador, ao contrário do que se possa imaginar, a falta de educação patrimonial não é privilégio das classes menos instruídas. Exemplo disso é a dilapidação sistemática que igrejas e oratórios de todo o País sofreram, com inúmeras peças sacras desviadas para as mãos de colecionadores privados. O problema é tão grave, que, recentemente, o governo de Minas Gerais criou um serviço específico para receber denúncias sobre esse tipo de rapinagem.

“Outro grande problema que nosso patrimônio enfrenta vem de pessoas que, embora movidas por boas intenções, mas sem nenhum conhecimento técnico de restauração, acabam destruindo uma obra de arte, seja por intervenções inadequadas, seja por descaso”, afirma Mário. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição que adorna os jardins do Palácio da Alvorada, de que só recentemente as autoridades se deram conta da necessidade de uma restauração. Isso aconteceu depois do restauro da imagem do Cristo Morto que decora a sala de audiências do Palácio do Planalto, trabalho também executado pelo Cecor.

Peça da escola baiana, provavelmente da segunda metade do século 19, ela se encontrava em péssimo estado de conservação quando chegou à UFMG. “Apesar de não ser tão velha assim, o estado de degradação da peça impressiona. O repetido movimento interno dos materiais, provocado pela variação climática através dos anos, alterou profundamente a estrutura da peça, causando trincas e descolamentos. Encharcada pela chuva, ela foi alvo da ação de fungos e sofreu oxidação nas proximidades dos pregos”, constata o restaurador.

Ele assinala, ainda, que os testes microquímicos revelaram, também, que a imagem foi pintada, pelo menos, três vezes, o que alterou as características originais da obra. “Essas camadas de tinta estão sendo cuidadosamente retiradas. Embora seja impossível resgatar a aparência exata que a peça tinha ao ser esculpida, o trabalho ressaltará aspectos originais preservados da obra.”

Interessada em divulgar o difícil e minucioso trabalho de restauração, a EBA oferece, atualmente, um curso de Iniciação à Conservação de Obras de Arte, em que são ensinados os fundamentos teóricos de identidade cultural e patrimônio e desenvolvidos conceitos básicos de conservação de pinturas de cavalete, escultura em madeira, obras de arte sobre papel e fotografia. O curso tem 60 horas/aula e é realizado semestralmente. “É a nossa contribuição para a educação patrimonial no País”, afirma Mário Souza Júnior.

Maria do Céu Diel

Memória cinematográfica

Embora Minas seja apontado como o Estado que sempre produziu a melhor crítica cinematográfica do País, chama a atenção a precariedade em que sobrevivem as filmotecas e os espaços de conservação da memória audiovisual mineira. Por isso, essa passou a ser outra importante área de atuação da UFMG no campo da preservação do patrimônio cultural.

“No Brasil, em geral, os filmes são armazenados de forma precária; além disso, os espaços são inadequados, a qualificação da mão-de-obra e a solução dos problemas técnicos de conservação andam de forma muito lenta”, afirma o professor da EBA, Luiz Nazário. Sendo essa a regra brasileira, segundo ele, em Minas, não seria diferente. “Hoje, não existem, em Belo Horizonte, oficinas de conservação de filmes”, constata resignado.

Assim, quando assumiu a chefia do departamento de Fotografia, Teatro e Cinema da EBA, Nazário pôs mãos à obra. Na época, a Escola havia recebido em doação quase 200 latas de filmes que pertenciam ao acervo do extinto consulado da República Democrática Alemã em Belo Horizonte, O fato despertou interesse e motivou uma grande mobilização pela preservação da memória do cinema produzido em Minas Gerais. Desses esforços resultou o projeto Filmoteca Mineira.

A idéia era resgatar e preservar todas as nossas preciosidades cinematográficas. Desenvolvido em parceria com o Centro de Referência Audiovisual (Crav) de Belo Horizonte, o projeto resultou em um catálogo e dez DVDs, que disponibilizam para o público interessado filmes e vídeos produzidos em décadas passadas.

O primeiro trabalho dos pesquisadores foi o de identificar cerca de 1.600 filmes em película, matrizes em Betacam e vídeos, pertencentes a acervos da EBA e do Crav.

“Depois da sistematização, a transição dos filmes para DVD foi realizada de diversas formas”, explica Nazário. “Os filmes em película, por exemplo, foram projetados em telas de cinema. Os pesquisadores gravaram essas imagens em uma câmera digital de alta definição e, depois, copiaram todo o material no computador. Quanto ao conteúdo das gravações em fitas, ele foi transferido diretamente do reprodutor para o disco rígido dos equipamentos.”

Nazário chama a atenção para o importante acervo documental resultante desse trabalho. “Além de filmes como ´Reminiscências` (1909), do cineasta mineiro Aristides Junqueira, considerada o mais antigo registro cinematográfico preservado em película do Brasil, recuperamos o trabalho de cineastas pioneiros – como Paulo Benedetti, Igino Bonfioli, Almeida Fleming, Pedro Comello, Humberto Mauro e Schubert Magalhães – e, também, o importantíssimo trabalho do movimento cineclubista em Belo Horizonte.

O conteúdo dos DVDs foi dividido em temas, que abordam as mais importantes produções realizadas em diversos períodos, formando um acervo precioso de informações sobre o panorama cinematográfico de Minas Gerais. O projeto não prevê a comercialização desses DVDs, mas estão à disposição do público interessado na biblioteca da EBA e no Crav.

Preto no branco

Maria do Céu Diel

Há alguns anos, a professora Sônia Queiroz, da Faculdade de Letras da UFMG, elegeu como objeto de pesquisa uma manifestação cultural que, desde menina, lhe era familiar – a língua da Tabatinga, dialeto que mistura o português rural do Brasil-Colônia a línguas de grupos Banto – sobretudo o quimbundo e o umbundo, falados no bairro do mesmo nome, na cidade mineira de Bom Despacho, onde a pesquisadora passou a infância.

O assunto foi tema de sua dissertação de mestrado e rendeu, ainda, o livro Pé preto no barro branco (Editora UFMG), em que ela faz uma análise das origens e do desenvolvimento daquela sintaxe peculiar. Sônia não parou aí e, até hoje, continua a pesquisar esses cruzamentos lingüísticos que constituem verdadeiros achados patrimoniais, frutos das relações sociais e econômicas de nosso passado colonial e escravagista. Esses trabalhos integram a linha de pesquisa do projeto Minas Afro-descendente, coordenado por Sônia.

Esse projeto tem como objetivo revitalizar as línguas africanas remanescentes em Minas, e, assim, resgatar um importante patrimônio, que, durante séculos, foi relegado a segundo plano. E a caminhada de Sônia começou pela Tabatinga, fenômeno que ela explica assim: “O uso do dialeto se dava em função da necessidade de comunicação entre escravos que, vindos de pontos diferentes da África, eram misturados nas senzalas. Para sua sobrevivência, desenvolveram, então, um dialeto próprio, que lhes servia de instrumento para o diálogo e, ao mesmo tempo, de afronta aos patrões brancos”.

Sônia chama a atenção para a importância de se recuperar uma língua que, hoje, está praticamente extinta. “Em 1981, ano em que fiz a pesquisa, existiam em Bom Despacho 207 falantes da Língua da Tabatinga. Hoje, esse número deve ser bem menor”, lamenta ela. “Ofexa yange elimi liange” (minha pátria é minha língua), diria um desses últimas falantes do dialeto.

Letra e música

Sônia Queiroz trabalha, atualmente, em duas novas vertentes do projeto Minas Afro-descendente – a elaboração de um dicionário e um curso de extensão das línguas quimbundo e umbundo.

O dicionário vai sistematizar o dialeto que a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro chama de “língua de Minas”, falada pelos escravos que trabalhavam dentro da casa grande. “Essa língua também era uma mistura do dialeto das senzalas com o português.”

Já o curso de curso de extensão das línguas quimbundo e umbundo, que deve ser oferecido ainda neste primeiro semestre de 2005, vai juntar a experiência dos falantes da língua da Tabatinga – como Maria Joaquina da Silva, a Fiota – com a dos cantadores de “vissungo” do arraial do Milho Verde, município do Serro – “seu” Crispim e “seu” Ivo. A contribuição musical, que também integra o complexo sincretismo cultural afro-brasileiro, fica por conta do talento do grupo vocal DiKanza, formado por alunos angolanos da UFMG “A idéia é ensinar a língua a partir das canções do grupo”, esclarece Sônia Queiroz.