Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº. 6- março 2005

Editorial

Entrevista
Ministro Tarso Genro

Pesquisa e desenvolvimento
A hora e a vez dos Parques Tecnológicos

O Parque Tecnológico de Belo Horizonte
Mariana de Oliveira Santos e Francisco Horácio Pereira de Oliveira

Ciência e Tecnologia
Da "prateleira" da academia para o mercado

Propriedade intelectual e transferência tecnológica
Sérgio Oliveira Costa e Juliana Crepalde

Educação
Celeiro pedagógico

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico
Magda Becker Soares

Inclusão
Os esquecidos da Terra

Patrimônio
Ontem, hoje e sempre

Contando pedra e cal

Saúde
Rede virtual, saúde real

Excelência na prática médica
Ênio Pietra

Saúde Pública
Homem/bicho/homem,
a cadeia alimenta
r

A multiplicidade do Hospital Vterinário
Cleuza Maria de Faria Rezende

Arte e Cultura
Quatro festivais décadas

O Festival de Inverno da UFMG
Evandro José Lemos da Cunha

UFMG Diversa
Expediente

UFMG em números

Outras edições

 

Patrimônio

Contando pedra e cal

Inventário dos imóveis de sítios históricos inspira pesquisas e políticas conservacionaistas

Um enorme manancial para pesquisas. É como se podem definir os minuciosos inventários de bens imóveis realizados, nos últimos quatro anos, sob a coordenação de pesquisadores da Escola de Arquitetura da UFMG, nas cidades mineiras de Ouro Preto e Mariana e nas baianas Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Arraial d’Ajuda, Trancoso, Vale Verde e Caraíva.

Marcelo Kraiser

Rica e indispensável fonte para definição de políticas e ações públicas, os inventários, que revelaram cientificamente a frágil situação dos sítios históricos, começam a ser dissecados, exibindo números que demonstram, ainda mais, a enorme importância da preservação consciente e sustentável do patrimônio.

Fruto do desdobramento dos inventários das duas cidades mineiras, o documento Um patrimônio cultural em transformação, iniciado em 2002 e finalizado em novembro passado, retoma os dados do levantamento realizado entre agosto de 2001 e dezembro de 2002, por encomenda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O que começa a acontecer, segundo a professora Fernanda Borges de Moraes, é o aproveitamento das informações que integram a coleção de CD-ROMs que contêm o estudo e o registro da evolução e das características urbanas e arquitetônicas de Ouro Preto e Mariana, com casario dos séculos 18 e 19, base de dados digitalizadas com dados socioeconômicos, planialtimétricos e fotográficos dos imóveis, plantas cadastrais atualizadas e maquetes eletrônicas interativas.

Olhar cauteloso

Até então, apesar de minuciosas, essas informações estavam apenas listadas, sem um olhar mais cauteloso sobre o significado delas. Coordenadora das investigações em Ouro Preto e Mariana, junto com o professor Frederico Tofani , que iniciou o trabalho dos inventários para o Iphan, Fernanda destaca a importância de todos os números revelados para a formulação de políticas públicas de planejamento e de ações voltadas para questão da preservação do patrimônio histórico e cultural. Sem a análise dessas informações, tudo fica um pouco sem sentido, ressalta a professora, lembrando que não apenas o Iphan e outros órgãos devem destrinchar os inventários, mas especialmente estudiosos e pesquisadores.

“As universidades têm estrutura que permite o aprofundamento das pesquisas. É muito interessante que esses dados estejam, agora, disponíveis para professores, alunos, mestrandos e doutorandos. Temos agilidade e condições de utilizar as informações de uma forma muito mais ampla, subsidiando o poder público em suas ações”, assinala ela.

Em mutação

Um patrimônio em transformação é o documento formulado por Fernanda Moraes e Frederico Tofani, com a ajuda da bolsista de Iniciação Científica Vanessa Freitas da Silva.

Esse documento debruça-se em parte das informações coletadas, jogando luz sobre dados relativos a preservação dos imóveis, sistemas construtivos remanescentes, uso e ocupação do solo e postura da população frente às políticas de preservação já adotadas. Foram tomados para análise os dados referentes a 641 dos 1104 imóveis inventariados em Ouro Preto e a 268 dos 546 inventariados em Mariana, todos inseridos no perímetro definido como sítio histórico tombado. Segundo Fernanda Borges, ao observar os sistemas construtivos dessas duas cidades foi possível tirar conclusões sobre o grau de transformação ou de manutenção ocorrido ao longo dos anos. Fica bastante evidente as diferenças de preservação entre as áreas consideradas centrais, com maior apelo turístico, e as periféricas.

Nas áreas centrais, o casario apresenta, em maior quantidade, técnicas construtivas – adobe, pau-a-pique, alvenaria de pedra ou de tijolo – e de materiais de construção da época em que foi erguido, enquanto, nas áreas periféricas, as substituições desses elementos tradicionais são mais corriqueiras. Fernanda Moraes lembra que as duas cidades foram declaradas Patrimônio Cultural da Humanidade há mais de 60 anos, motivo suficiente para que estivessem muito mais bem conservadas, já que, pelo menos em tese, são alvo de políticas mais rígidas de preservação de patrimônio.

Os índices relativos à conservação, entretanto, demonstram que essa não é a regra. Em Ouro Preto, apenas 31% dos imóveis estão em bom estado; 33% foram considerados em estado razoável e 36%, com problemas. Na vizinha Mariana, os resultados indicam bom estado em 32% dos imóveis, estado razoável em 37% e problemas em 31%.

Marcelo Kraiser

Conflitos com o Iphan

O documento chama atenção para o fato de que muitos dos problemas detectados são oriundos de conflitos existentes entre o Iphan e os habitantes do imóveis – moradores, comerciantes, prestadores de serviço. Analisou-se, por isso, o significado que a preservação do patrimônio histórico e cultural tem para essas pessoas. Na maioria dos casos, em ambas as cidades, mais de 90% dos habitantes são favoráveis à preservação. Porém, a maioria declarou insatisfação com a atuação do Iphan. A avaliação negativa, tanto em Ouro Preto quanto em Mariana, ultrapassou 80%. A insatisfação enquadra-se em diferentes justificativas, mas os pesquisadores ressaltam o desconhecimento dessa população em relação à atuação do órgão.

“É muito significativo o número de pessoas que não conhece a atividade do Iphan”, observa Fernanda, destacando que esse órgão tem influência fundamental na política de preservação dos dois sítios desde o período getulista do Estado Novo. Portanto, não é razoável esse desconhecimento, que chega a 18% em Ouro Preto e a 23% em Mariana. Os entrevistados – respectivamente, 35% e 22% – acusam o órgão de não ter critérios e normas bem definidas e ainda observam que o Iphan é um órgão inacessível, inoperante, prejudicial e que não presta assessoria.

Apesar de apontarem algumas deficiências na verificação dos quesitos apresentados aos entrevistados, os pesquisadores acreditam que a avaliação negativa feita pela população está relacionada a diferentes aspectos – como, por exemplo, a descontinuidade de atuação do órgão nas cidades, especialmente em Mariana, os conflitos advindos dos embargos de obras, com longos processos judiciais. Eles ressaltam as dificuldades financeiras e estruturais dos órgãos de patrimônio no País – e que atingem os três níveis de governo –, entretanto ressalvam que existe uma relação de mão dupla entre a carência de recursos e o distanciamento da população assistida, percebido por essa própria população. A situação agrava-se quando se observa que a população não exerce pressão política para que o Iphan ou órgãos semelhantes sejam equipados com melhores condições de atuação. Ao contrário, em muitos momentos, a população alia-se a políticos que querem “enfrentar” tais órgãos.

Paradoxo estadonovista

Para Fernanda e Frederico, o quadro encontrado em Ouro Preto e Mariana revela um “paradoxo estadonovista”, calcado no modelo de criação do Iphan que, de certa maneira, ainda prevalece na cultura da Instituição. Essa contradição mescla ingredientes, salientam os professores, que são, atualmente, “incompatíveis”. Entre eles, o “esforço heróico” das três primeiras décadas de sua criação, em 1937, quando intelectuais – como Mário de Andrade, Gustavo Capanema e Carlos Drummond de Andrade – estiveram à frente deles. Um dado expressa esse esforço: mais de 20% de todo o tombamento do patrimônio até hoje realizado pelo órgão data de 1938.

Um segundo ingrediente que caracteriza a cultura instituída no Iphan é a definição rígida e própria “dos conceitos, modelos e fórmulas que orientaram com absoluto rigor tanto a cultura brasileira em geral quanto a determinação, valorização e preservação do que seja patrimônio”. Para os pesquisadores da Escola de Arquitetura, é preciso lembrar que esse arcabouço, elaborado conforme os marcos de uma época específica, não atende mais às necessidades atuais de conceitos e políticas de patrimônio. Existe um anacronismo evidente, destacam eles, que ajuda a corroborar o distanciamento entre o órgão e as populações dos sítios históricos e que é apontado nos inventários. Além disso, esses professores atentam para um certo isolamento dos escritórios do Iphan, que se fecharam em políticas centralizadoras e não conseguiram “avançar na necessária articulação entre planejamento urbano e preservação”.

As análises que começam a brotar dos inventários só são possíveis, é claro, por causa do enorme investimento institucional e dos profissionais da Escola de Arquitetura, bem como, também, de entidades com que trabalharam em parceri, na elaboração dos inventários dos sítios históricos, tanto em Minas Gerais quanto na Bahia. Com o levantamento de dados históricos, arquitetônicos e socioeconômicos, as pesquisas abriram não apenas uma mas várias portas para o amadurecimento de todas as questões que atravessam a problemática da conservação e preservação de sítios históricos.

Fernanda lembra que o trabalho possibilita um novo olhar sobre as cidades em questão e, também, novas metodologias e práticas quando se trata de desvendar patrimônios históricos, culturais e artísticos. As bases de dados históricos e arquitetônicos estão digitalizadas e foram realizadas novas plantas cadastrais, também em digital, que contêm a topografia, os logradouros, o parcelamento do solo e a projeção dos imóveis, monumentos e principais equipamentos urbanos.

Caminhada virtual

Marcelo kraiser

Quando trabalhou na preparação dos inventários dos sítios históricos, a UFMG apresentou uma novidade que, na época, causou surpresa e admiração, consumando-se, então, mais um passo em direção às novas tecnologias de análise para o setor.

Precursor dos inventários, iniciados nas cidades e vilas da Bahia, Frederico Tofani criou as maquetes digitais dos sítios urbanos pesquisados. Foi a primeira vez que tal recurso foi utilizado neste tipo de levantamento. Com elas, Frederico traçou um “caminhar virtual’ pelo patrimônio estudado. “Aconteceu de forma natural, porque, à medida que o trabalho ia avançando, eu tomava mais intimidade com ele e com os lugares”, assinala o professor, lembrando que maquetes digitais já faziam parte do cotidiano da Escola de Arquitetura. “A diferença é a utilização que temos dado a elas”, observa. “Partimos da realidade para as maquetes”, continua, destacando que estas são um suporte para o planejamento e a gestão de ações dirigidas ao patrimônio, auxiliando no desenvolvimento sustentável das comunidades.

Essa tecnologia, incorporada à metodologia atual do Iphan, supera outras mídias – como fotografias e filmagens –, acredita o professor. Ela permite um número infinito de animações e acesso a informações que, quando agregadas à maquete – como fluxo de pessoas e de materiais – são mais facilmente visualizadas. As maquetes também propiciam simulações, que forçam um olhar prospectivo sobre os sítios históricos urbanos, quando demonstram, por exemplo, o efeito de intervenções arquitetônicas ou urbanísticas.

Frederico Tofani ressalta que instrumentos do gênero são cada vez mais úteis ao planejamento de lugares que têm, por força própria e indutora, potencial turístico. “O turismo no Brasil tem assumido feições predatórias, eliminando o sujeito que deveria ser o beneficiário dessa atividade”, diz o professor.