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Águapalavra 1

 

Sonhei líquido, sonhei água.

Fluída, transparente que amalgamava à forma de minhas mãos.

Volume que deixava transparecer a lucidez de meu olhar.

Água, água, água...

São tantas.

 

Presença constante em minha vida.

Fascínio, umidade que perpetua o frescor de uma infância nunca esquecida.

Sou água, liquido, escoo... entre mundos, entre modos, entre meios.

Adapto, conformo, modelo, preencho.

Submerso, presencio a morte, quase revelada.

Vida infinita que flui.

 

Água.

 

Existem intimidades que não devem ser ditas.

 

Estranho momento desse escrever. Justo instante em que lavo a ponta dos dedos em uma lavanda oferecida, morna, perfumada que a acaricia os meus sentidos.

 

Água.


Que magnitude confere a minha vida.


Faço parte deste universo fluído. Entre mergulhos profundos, imersivos me surpreendo com paisagens únicas e abissais. Com o viver foi sendo construída essa aproximação incomum. Bebo desse universo líquido que me encanta, que revela que instiga.

 

Matéria de criação, água, instância do prazer e do sentir. Descubro em Bachelard2, em Barros3 e em Guimarães4 horizontes muito mais amplos, abordagens inesquecíveis.


Essa é uma história que perdura que existe desde antes, que insiste, e me confere o conforto de transitar por essa matéria já íntima. Muitas foram as artes, os trabalhos e as criações fluídas.

 

Crio... o meu ato criador, dialoga com esse elemento aquoso, surge o espaço,  a consistência e  a matéria.

Impulsionado pela ação coletiva, coordeno, inspiro e recrio.

Aproprio... na Imersão5, em águas tépidas, o reflexo ganha  contornos associados ao real e na duplicidade manifesta a forma, possível pela luz. Nessas incursões líquidas adentramos ao rio. No silêncio surdo da mata, sussurram segredos, um gorgolhar, que nos chama, sempre adiante.

 

Em invernos intensos, alto do Itacolomi. Em um gotejar continuado, cronométrico, medidor de um tempo que não existe, a Água6, fala do instante e do acaso. Nesse mesmo tempo, úmido e silencioso, nos reflexos da rocha molhada, uma instalação contígua, a Umidade7, segreda a dança da luz e da sombra.

 

Nessas divagações, o Espírito da água8, reflete a cada instante um reverberar ritmado. Outra escultura líquida, que adentra a síntese desse elemento. Já íntimos, compreendo, intuo, percebo e me surpreendo pela alegria do revelado.

 

Em Diálogos possíveis9, uma Diamantina concedida - água pura. Cristais líquidos que escoam entre as fendas rupestres. Ah! Diamantina, são tantas e tão raras as suas revelações. Naquelas madrugadas umedecidas e solitárias, em auroras douradas, em seus poentes infinitos, vivo o incomum. Montanhas de meu pensar, onde me deleitava ao nadar em suas águas noturnas, gélido estremecer. Grito abafado de uma felicidade incontida. Energias límpidas. Sentimento profundo por onde escoavam todos meus anseios, diluíam minhas angústias, acalmava meu coração quase menino. Menino porque feliz em meus mergulhos notívagos, únicos e solitários.

 

Nessas montanhas registro a beleza da massa líquida que modela e conforma o sólido. Longos instantes de eternidades. Uma Mutação contínua10 onde a forma é congelada no instante do olhar e é revelada pela luz e pela sombra. Entretanto, na ação de um tempo demasiadamente humano, contraponho um diálogo entre a Vida11 e a Morte12. O belo que se manifesta delicado, nas águas primordiais e nascentes, prometendo a vida face ao belo medonho de uma morte anunciada em águas aviltadas.

 

No barco da vida, em águas moventes, estacionário, sou a terceira margem, aquele que observa, aquele que vê, e antes de tudo, aquele sente eternidades.

Tempo de um tempo raro, vagante e disforme. Tempos não sequenciais e incomuns. Tempo do universo sentido. Observo em Olhar Diamantina13 a revelação pela água. Água que me encanta... que permite, que instiga que movimenta, que conduz.

Em terras estrangeiras a água se fez presente. Monumental, adquire contornos públicos e possibilita pela história recente de uma cidade submersa, o regate de um tempo e da memória. No Monumento ao bicentenário14, a água é a base é o fio condutor do olhar, é o rio vertical, que nos guia para o alto, emergindo de águas revoltosas e incontidas.

O caminho pela água nos leva ao universo.

 

Águapalavra15...

 

Descubro outra margem. Pelo ar descubro a água.

Água, água e água... sul de um continente. Em paisagens argentinas sinto surpreendido...

Água, água, água e mais água... platinas.

Naquelas planícies encharcadas, flutuamos juntos, cercados pelas águas. Compartilhamos, vivenciamos e sentimos. Criamos, falamos a linguagem dos índios e intuímos revelações das águas. Nos permitimos o espaço do encanto e do canto. Ao som orquestrado de água, água, águaaaaaaaa. Cantamos a felicidade de sermos líquidos, fluídos, contíguos e adjacentes.

 

E lá bem ao sul, em terras distantes e mais tarde ao norte, sertanejos, num parque de um rio quase preto, vivenciamos plenos a água. E nesse convívio, criamos juntos um poema visual, revelador dos encantos das águas. Águas puras, águas vívidas e vividas, memória de um universo que se foi. Como um rio.

 

Manhã,

recortando o olhar

havia um rio.

Desceu... Encontrou montanhas.

No caminho dos ventos,

permeou pedras.

Redondas águas de um gosto profundo e azul.

Sons dourados que encantam.

... ... ...

Com o rio,

veio a noite.

O céu trouxe as estrelas,

silêncio...

O olhar, agora é rio.

Perdido.

 

Em Águapalavra16 traduzimos esse universo líquido, uma visualidade sentida, poetizada e revelada. Seja na linguagem Mocovi17, em língua portuguesa ou hispânica, na musicalidade do improviso ou na poética roseana. Águapalavra18 uma experiência nossa para o mundo. Uma experiência líquida.

 

Lá fora, em quanto escrevo, o mundo se desfaz em meio a um dilúvio de verão.


Fabricio Fernandino

 

 

Memoria y devenir, palabras claves de un viaje que comienza en el Parque Estadual de Río Preto con el propósito de registrar el pulso poético de cuatro ríos de Latinoamérica: Preto, Paraná, San Francisco y Amazonas.

 

A partir de un doble registro, fenoménico y poético, se propone una instancia de sensibilización sobre el cuidado de nuestros bienes naturales. El objetivo es propiciar una reflexión a partir de la mirada del Otro. Nunca los litorales son iguales y aunque coincidamos en la importancia del agua como bien colectivo, cada cultura, cada pueblo lo vivirá de manera diferente.

 

El resultado es un relato polifónico que articula lenguas y geografías diversas. Flujos y derivas a través del espacio y del tiempo. Signos de lluvia y de sequía. Intensidad de los vientos. Pulso del agua en la grieta de una roca. Primer movimiento de una canción futura que nos encuentra más sensibles y más humanos.

Ritos do pasaje: luz, sonhos e fala do Río Preto.

 

  1. Águapalavra – Figura 1 – Instalaçâo coletiva realizada por ocasiâo da Bienal 0 – Bienal de Arte Universitária em 2010, no Centro Cultural da UFMG e que teve sua continuidade em Diamantina na Galeria do Teatro Santa Isabel dentro das atividades do 43 Festival de Inverno da UFMG. Esse coletivo foi composto por artistas professores do Brasil e da Argentina. Coordenaçâo: Fabricio Fernandino UFMG, Co-participaçâo: Francisco Marinho UFMG, Damian Kess UNL, Isabel Molinas UNL e Eduardo Righi UNLP. Foram trabalhadas neste projeto as poéticas computacionais interativas associadas ao texto, ao som e à visualidade plástica, relacionadas ao tema da água. Este é um projeto realizado pelo Centro Especializado de Arte e Educaçâo Ambiental da UFMG.

  2. Gaston Bachelard – Filósofo e poeta francês.

  3. Manoel de Barros – Poeta brasileiro.

  4. Guimarães Rosa – Escritor brasileiro.

  5. Figura 2 – Imersão – Série: Esculturas efêmeras– Parque do Itacolomi, Ouro Preto - Julho, 1994 – Fotografia Fabrício Fernandino.

  6. Figura 3 - Água – Série de esculturas: O olhar e o fazer – Parque do Itacolomi, Ouro Preto – Julho, 1996 - Fotografia Fabrício Fernandino.

  7. Figura 4 – Umidade – Série de esculturas: O olhar e o fazer – Parque do Itacolomi, Ouro Preto – Julho, 1996 - Fotografia Fabrício Fernandino.

  8. Figura 5 – O espírito da água – Série de esculturas: Poesia das coisas naturais – Belo Horizonte – Julho, 1996 - Fotografia Fabrício Fernandino.

  9. Figura 6 - Instalação: Diálogos possíveis – Parque do Biribiri – Diamantina – Maio, 2005 - Fotografia Paulo Baptista.

  10.  Figura 7 – Mutação contínua – Serie: Esculturas da luz – Parque do Rio Preto – Rio Preto – maio de 2002 - Fotografia Fabrício Fernandino.

  11. Figura 8 - Instalação: Vida e Morte, Respostas a Krajcberg, uma obra que homenageia aquele que admiro pela força e a pela coragem, que sempre me instiga e me cobra ações – Serie: Águas Vivas – Diamantina - Agosto, 2008. - Fotografia Fabrício Fernandino.

  12. Figura 9 - Idem – Serie: Águas mortas – Pico do Itabirito – Itabirito – Maio, 2008 - Fotografia Fabrício Fernandino.

  13. Figura 10 - Residência Artística: Olhar Diamantina - Série Fotográfica: O olhar – Diamantina – Agosto, 2005 - Fotografia Fabrício Fernandino.
  14. Figura 11 - Monumento a Bicentenário – Monumento, alusivo ao bicentenário da Republica Argentina e ao centenário de fundação da Universidad Nacional del Litoral.  Coletivo que partiu de um conceito básico e desenvolvido sob a minha coordenação com a participação de artistas e estudantes da UNL. O tema água foi a base do trabalho e toda matéria constitutiva. - Santa Fé – Argentina – outubro de 2010. Fotografia Fabrício Fernandino.

  15. Figura 12 - Instalação Águapalavra – Centro Cultural da UFMG – Belo Horizonte – dezembro, 2012 - Fotografia Fabrício Fernandino.

  16. Figura 13 – Idem.

  17.  Mocovi, tribo indígena da região sudoeste da Argentina.

  18. Figura 14 - Instalação Águapalavra – Centro Cultural da UFMG – Belo Horizonte – dezembro, 2012 - Fotografia Fabrício Fernandino.