Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 1 - 2002

Editorial

Entrevista
Reitora discute cotidiano da UFMG

Médicas
Os laços são estreitos com a comunidade

Biológicas
Os bichos são os grandes aliados

Ciências Sociais Aplicadas
Multidisciplinaridade é a marca delas

Ciências da Terra
Ligados no ambiente do planeta terra

Ciências Exatas
O lúdico pôs para correr a imagem de bicho-papão

Engenharias
Eles estão pintando o sete

Humanas
Programas privilegiam a cidadania

Artes
Um bálsamo para a vida

Fump
Acolhimento garante permanência

Hospital das Clínicas
Onde ensino e pesquisa combinam com assistência

Pólo do Jequitinhonha
Desenvolvimento sem abrir mão da regionalidade

Manuelzão
Rio das Velhas ganha novos ares

Cultura
Produção cultural para todos os gostos

Editora
Em sintonia com o mercado

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

Ciências Sociais Aplicadas

Solidariedade a galope

Projeto multidisciplinar da UFMG muda a vida dos carroceiros e alcança reconhecimento nacional

Osvaldo Afonso

O mineiro Marco Antônio Soares aprendeu a lidar com os cavalos quando ainda nem podia imaginar que um dia esses animais seriam companheiros de sobrevivência. Aos 14 anos, levava os cavalos de amigos para pastar ou tomar banho. Aos 21, comprou Pivete, “um cavalo comum, novo e arisco”. Durante mais de um ano, Pivete foi amansado. Seu destino estava traçado: era puxar uma carroça no asfalto, carregando entulho, sobra de poda, lixo, móveis, gás, o que desse. No ano passado, depois de quatro anos de trabalho, Pivete foi trocado por Chaparral. Este, sim, um animal velho de guerra, de nove anos, “esperto que nem ele só” e também com o destino certo: a carroça herdada de Pivete.

Chaparral e Marco Antônio, de 27 anos, fazem parte do Projeto Carroceiro, ganhador, em apenas cinco anos de existência, de dois prêmios nacionais e um da própria UFMG. Coordenado pela professora Maristela Silveira Palhares, do departamento de Clínica e Cirurgia da Escola de Veterinária, a experiência transmitiu aos carroceiros de Belo Horizonte a consciência e a satisfação de ser cidadãos. Eles foram reconhecidos como profissionais. Já podem, inclusive, contribuir para o Instituto Nacional da Previdência Social como carroceiros. Ganharam identidade como tal, placa nas carroças e um amplo programa de atendimento a eles e a seus animais. Multidisciplinar, o projeto incorpora as escolas de Medicina e de Farmácia e a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Estima-se que, na Capital mineira, existam dez mil carroças, responsáveis por grande parte do transporte de cargas indesejáveis, como entulho ou lixo, e até por pequenas mudanças de famílias. “Eles estão por toda parte”, destaca Maristela Palhares. Ela lembra que uma das maiores motivações para a formação do projeto, em convênio com a Prefeitura, foi levar ao carroceiro a consciência profissional e destacá-lo como agente de preservação ambiental. O resultado positivo é evidente: os carroceiros integram, por exemplo, um programa de reciclagem de restos da construção civil. Todo entulho encaminhado para qualquer das 14 Unidades de Pequenos Volumes implantadas na cidade é transformado em piso asfáltico e em tijolos para construção de baixo custo.

Em 1997, no início do projeto, foram recicladas 36 mil toneladas de entulho. “Seis anos depois, em 2001, foram 95 mil toneladas”, comemora Maristela Palhares. A reciclagem é parte de um programa maior, que abarca o atendimento ao carroceiro e ao seu animal. Ao profissional, são oferecidos cursos de qualificação, de educação no trânsito e de manejo de eqüinos. São promovidas, também, palestras técnicas a cada dois meses e um encontro anual de todos os carroceiros. Marco Antônio participou de quatro desses encontros.

Em função do projeto, foi criada uma regulamentação para o tráfego de carroças no Município e ainda o Disque-Carroça, telefone através do qual o serviço do carroceiro pode ser solicitado. As carroças foram emplacadas (mais de 800 até o final de 2001), e os carroceiros receberam carteiras de condutores. Marco Antônio constata que as mudanças foram grandes e exalta o controle de vacinação, o que, admite, não era feito com regularidade antes, apesar da ameaça constante de perder o cavalo. O Projeto Carroceiro dá assistência ao animal de forma integral. Na Escola de Veterinária, cavalos e éguas cadastrados passam por controles de doenças, de sorologia e de vacinação.

Foram vacinados mais de mil cavalos, um trabalho que é feito todas as sextas-feiras por alunos e professores, que vão às Unidades de Pequenos Volumes, seguindo uma agenda prévia. Além do atendimento clínico, os cavalos recebem atendimento hospitalar quando necessário. A Escola de Veterinária é também responsável pela marca de nitrogênio líquido que identifica o animal, uma forma de controle contra roubo, um grande problema vivido pelos carroceiros. “Se a gente não ficar de olho, o bicho some mesmo. Basta deixar dez minutos de bobeira que passa um e pega”, conta o desconfiado Marco Antônio.

O Projeto Carroceiro implementou um plano de melhoramento genético de éguas, que já contabiliza 69 potros nascidos e 43 éguas vão parir ainda em 2002. A cada ano, o atendimento aos carroceiros tem crescido, no mesmo passo em que a história de sucesso do projeto é reconhecida. Em 2000, ele conquistou o prêmio Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Ford e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Este ano, recebeu o prêmio Milton Santos, da Fundação Oswaldo Cruz, e o Prêmio de Extensão, da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG.

Direito à cidadania

Práticas jurídicas aproximam alunos da realidade brasileira e desenvolvem consciência cidadã

Osvaldo Afonso
Comunidades carentes contam com programas da UFMG para a solução de problemas do cotidiano

Em convênio com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), outro projeto de extensão da UFMG promove a conscientização dos direitos do cidadão. Há sete anos, o programa Pólos Reprodutores de Cidadania, da Escola de Direito, trabalha em diversas frentes com populações organizadas ou em organização. A idéia é ajudar esses grupos populares em processos nos quais o direito sustenta a ação social e comunitária. “Quando criamos o projeto, pensávamos numa forma de colocar fim ao enclausuramento dos estudantes nas salas de aula”, diz a professora Miracy Barbosa Gustin. O estágio, segundo ela, oferece um outro tipo de capacitação, mas que não aproxima tanto os alunos da realidade social que os cerca quanto esse programa.

Participando do Pólos Reprodutores de Cidadania, os estudantes, avalia a professora, aumentam muito a capacidade individual de compreensão de situações, porque eles são testemunhas. Em convênio com a PBH, fazendo diagnósticos a partir de pesquisas de campo, eles contribuem para a mudança de situações de forma bastante prática. “Atuamos como mediadores, estimuladores de práticas que integram socialmente, mas nunca ficamos à frente das organizações”, explica Miracy Gustin. A aluna do sexto período de Direito Sielen Barreto Caldas participa do programa há dois anos e garante que a experiência “é muito enriquecedora”, porque permite que a teoria seja aplicada dentro de um contexto bastante especial.

No projeto com populações de rua, Sielen integrou a turma que realizou o perfil socioeconômico dos catadores de papel e de material reciclável em Belo Horizonte e em outras 14 cidades de Minas. Esse perfil serviu para que ela avançasse em um outro projeto, que é o de incubadoras de cooperativas populares. Hoje, ela atua junto aos catadores de papel de Contagem, que estão montando uma associação. “Trabalhamos sempre no sentido da construção. Os catadores vão deixar de ter uma associação de fato para ter uma de direito”, explica ela, lembrando que os associados já haviam iniciado o processo de organização da categoria.

Em reuniões semanais, os estudantes auxiliam na legalização da associação e na solução de dúvidas. “Nós estamos elaborando o regimento interno da associação. É muito interessante porque os catadores são extremamente participativos, solicitam temas para discussão e estão sempre nos questionando”, afirma Sielen. O Pólos Reprodutores de Cidadania conta, também, com a participação de alunos de outras áreas, como Psicologia e Sociologia. Essa integração de áreas é necessária ao trabalho, analisa Miracy Gustin, porque o programa lida com questões que vão muito além do direito formal.

O programa está presente em áreas muito pobres, como aglomerados de favelas, e também em bairros de periferias carentes. Daí surgem demandas bastante objetivas, como por soluções negociadas de problemas do dia-a-dia dessas comunidades. “Em 80% dos casos, atuamos como mediadores. Queremos também evitar ações judiciais porque sabemos que o Judiciário não suporta mais tantas ações”, afirma Miracy Gustin. No aglomerado Santa Lúcia, na região Sul da Capital mineira, o Pólos Reprodutores de Cidadania está presente desde o início de sua criação.

Em um convênio com a Secretaria de Estado da Justiça, os participantes do projeto integram os Centros de Referência do Cidadão, montados em diferentes áreas da cidade. Em outro convênio, com o Instituto de Ciências Biológicas, os estudantes irão atuar na formação de cooperativas de produtores rurais na região do Jaíba, no Norte do Estado. O Centro Tecnológico de Minas Gerais é outra instituição que solicitou a participação do programa em planos de discussão de legislação ambiental com representantes de prefeituras. Toda a atividade do Pólos Reprodutores de Cidadania se completa com a ação de um grupo de teatro. Atores orientados por professores do Teatro Universitário (TU) encenam peças dentro do contexto das discussões, emocionando platéias como forma de estimular a reflexão sobre o assunto.

Osvaldo Afonso
Supervisionados, estudantes da divisão de assistência jurídica atuam como advogados na defesa dos menos favorecidos

Na Escola de Direito, outra atividade une futuros advogados a populações desfavorecidas. É o serviço prestado pela Divisão de Assistência Jurídica (DAJ) onde estudantes agem como profissionais sempre orientados por professores. “É o estágio mais completo que já fiz”, atesta a aluna Kissila Almeida Silva, do décimo período, que já passou por estágios no Juizado Especial Cível, no Juizado Especial das Relações de Consumo e no Ministério Público Federal. Para Kissila, na DAJ, o estudante aprende muito mais, porque tem o peso da responsabilidade pela ação ao seu lado. “Nos outros estágios, a gente cumpre ordens. Aqui não. Temos nós mesmos que procurar soluções, estudar muito para propor as ações e acompanhar todo o processo”, conta.

Segundo o diretor da DAJ, professor Paulo Edson Soares, o ensino prático se dá com muita ênfase na assistência jurídica prestada aos pobres (no sentido legal) pelos estudantes e professores. “Os alunos amadurecem muito. Eles são verdadeiros advogados, que se dedicam com corpo e alma aos clientes”, sustenta. Sob a responsabilidade dos cerca de 40 estagiários que atendem na DAJ, estão aproximadamente mil processos já ajuizados. “É muito, mas todo mundo dá conta do que tem que fazer. Cada aluno batalha muito pelos clientes, se envolve, tenta ajudar de todas as maneiras. Não é uma relação fria. Existe uma troca, porque as ações sempre têm um grande apelo social ou emocional”, salienta Soares. Quando aluno, o atual diretor também foi estagiário na DAJ.

O professor quer mais para o serviço. Ele pretende transformar a DAJ numa referência para todo o País. “Com seis professores trabalhando diretamente na área, podemos fazer isso com tranqüilidade”, diz ele, certo de que a experiência proporcionada pela Divisão molda excelentes profissionais. Paulo Soares garante que os mais famosos advogados que passaram pela Escola de Direito foram estagiários na DAJ. O serviço existe há 40 anos. “Nosso trabalho é relevante para a sociedade e é uma forma de devolver os benefícios que temos por estudar numa escola pública”, acredita Kissila Almeida Silva.