Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 1 - 2002

Editorial

Entrevista
Reitora discute cotidiano da UFMG

Médicas
Os laços são estreitos com a comunidade

Biológicas
Os bichos são os grandes aliados

Ciências Sociais Aplicadas
Multidisciplinaridade é a marca delas

Ciências da Terra
Ligados no ambiente do planeta terra

Ciências Exatas
O lúdico pôs para correr a imagem de bicho-papão

Engenharias
Eles estão pintando o sete

Humanas
Programas privilegiam a cidadania

Artes
Um bálsamo para a vida

Fump
Acolhimento garante permanência

Hospital das Clínicas
Onde ensino e pesquisa combinam com assistência

Pólo do Jequitinhonha
Desenvolvimento sem abrir mão da regionalidade

Manuelzão
Rio das Velhas ganha novos ares

Cultura
Produção cultural para todos os gostos

Editora
Em sintonia com o mercado

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

Manuelzão

Uma história de amor

Foi no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram. Até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia. Foram pela porta da cozinha. Manuelzão adiante, os cachorros sempre latindo. – Ele perdeu o chio... Triste duma certeza: cada vez mais fundo, mais longe nos silêncios, ele tinha ido s’embora, o riachinho de todos. Chegado na beirada, Manuelzão entrou, ainda molhou os pés, no fresco lameal. Manuelzão, segurando a tocha de cera de carnaúba, o peito batendo com um estranhado diferente, ele se debruçou e esclareceu. Ainda viu o derradeiro fiapo d’água escorrer, estilar, cair degrau de altura de palco a derradeira gota, o bilbo. E o que a tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que todos tremiam mágoa nos olhos. Ainda esperaram ali, sem sensatez; por fim se avistou a estrela d’alva. O riacho soluço se estancara, sem resto e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um menino sozinho tivesse morrido.
Guimarães Rosa, em “Uma estória de amor”

Osvaldo Afonso

A volta do peixe ao rio. Uma idéia tão simples quanto absurda é a falta dele no seu hábitat natural. Foi com esse propósito que professores e estudantes dos mais diferentes cursos da UFMG se lançaram na construção de um ideal de valorização do homem e do meio ambiente. É o projeto Manuelzão, nascido nas barras do Internato Rural, programa da Faculdade de Medicina, mas que alcançou dimensão muito além de suas fronteiras iniciais. Junto com comunidades de 51 municípios, um batalhão de pessoas luta para ver o peixe retornar a toda a bacia hidrográfica do Rio das Velhas.

Com mais de 700 quilômetros de extensão, o Rio das Velhas, o maior afluente do Rio São Francisco, sofre os males do crescimento e do progresso desordenado de grandes regiões e com o descaso de autoridades e populações com o meio ambiente. Em diferentes pontos dessa bacia, localizada totalmente em Minas Gerais, o peixe não é mais visto e muito menos pescado. O Rio Arrudas, seu mais importante afluente, em Belo Horizonte, está morto. Ele e a bacia do Córrego do Onça, na região da Pampulha, são os maiores poluidores do Rio das Velhas, porque recebem os esgotos residenciais e industriais in natura da Capital. Só agora, mais de cem anos depois da inauguração da cidade planejada por Aarão Reis, uma estação de tratamento de esgoto está sendo construída.

Nos 51 municípios que pertencem à bacia do Rio das Velhas, englobando 29,1 mil quilômetros quadrados, vivem 4,5 milhões de pessoas. O alcance e a influência do rio junto a essas populações são enormes. Em Belo Horizonte, por exemplo, mais de 60% do abastecimento de água vem de mananciais do Alto Rio das Velhas (geograficamente, a bacia é dividida em Alto, Médio e Baixo Rio das Velhas). Os municípios que compõem a bacia são responsáveis por 42% do Produto Interno Bruto mineiro.

Da nascente, na Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, à foz, na Barra do Guaicuí (Várzea da Palma), no Rio São Francisco, a bacia do Rio das Velhas exibe pontos muito doentes e outros nem tanto, o que dá a certeza aos idealizadores do Manuelzão de que é possível, com esforço concentrado do poder público e da sociedade, tornar o rio um sinônimo de recuperação ambiental. Um dos professores participantes do Manuelzão, Antônio Tomáz da Mata Machado, conta que a batalha pela renovação da bacia nasceu da percepção de que a saúde pública tem que ter uma ponte direta com o meio ambiente saudável.

As clínicas realizadas pelo Internato Rural da Faculdade de Medicina, diz Mata Machado, não são suficientes para abarcar todos os propósitos da realização de uma medicina voltada para a ação comunitária. “E cuidar da água é um desafio que está diretamente ligado à promoção da saúde”, reforça. O Manuelzão foi pensado em função do Rio das Velhas, porque os coordenadores acreditam que a concentração de ações é mais produtiva.

O Manuelzão cresceu tanto, que foram criados 14 subprojetos, todos ligados aos “comitês de bacia”, formados por representantes do poder público e das comunidades. Eles definem as ações restritas à área de atuação, mas sempre visando ao objetivo maior do projeto. Por exemplo, foi o comitê de Belo Horizonte que trabalhou pela retirada dos esgotos do Córrego do Onça e que tenta convencer a Prefeitura e o Governo do Estado de que a canalização de rios não é a atitude ideal.

O Manuelzão também se preocupa com tarefas mais simples, sem as quais o projeto não caminha. O apoio a manifestações culturais no âmbito da bacia ou o trabalho de saúde preventiva são exemplos das ações integradas. “O Manuelzão significa uma mudança de mentalidade”, costuma dizer o coordenador do projeto, o médico Apolo Heringer Lisboa. A volta do peixe ao rio foi o foco escolhido, porque é uma forma de dar um sentido prático à luta pela renovação de todo o ecossistema da bacia do Rio das Velhas. “O peixe habita o imaginário das pessoas. Elas sabem que, quando ele está ali, o rio está vivo”, conclui Mata Machado.