Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

Sociedade

Sob os olhares de Hubble

Pesquisa coordenada por especialistas da Fafich pretende produzir um detalhado diagnóstico da vida social de Belo Horizonte

Um grupo de professores e pesquisadores integrados no doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política trabalha intensamente num audacioso programa de pesquisa probabilística sobre a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Tão audacioso, que vem sendo chamado pelos sociólogos de Social Hubble, por analogia com o potente telescópio refletor de 2,4 metros de diâmetro. A idéia, explica a socióloga Neuma Aguiar, coordenadora dos trabalhos, é observar a Capital mineira e as cidades no seu entorno através de uma lente de aumento capaz de dissecar a região sob a perspectiva sociológica.

Giane M. Figueirêdo

Se as lentes de Galileu Galilei permitiram, no século XVII, descobrir que a Lua tinha crateras, montanhas e vales, as do Hubble permitem, hoje, um nível de detalhamento milhares de vezes maior. Daí, a metáfora utilizada pelo grupo, que pretende, ao final do trabalho, gerar um mapeamento do universo social da Grande Belo Horizonte, levantando questões como desigualdades sociais, aspectos raciais, qualidade de vida, trabalho, participação política, associativismo, religiosidade e criminalidade.

Sobre esses aspectos se debruçam, hoje, mais de 20 pesquisadores e quase uma centena de alunos na pesquisa da Região Metropolitana de Belo Horizonte, a primeira do gênero no País.

Outros focos

A meta desses pesquisadores sociais é oferecer informações confiáveis aos responsáveis pela elaboração de políticas públicas. A primeira fase da pesquisa está pronta: foram entrevistadas 1.200 pessoas, por meio de questionários que propuseram aos entrevistados questões formuladas sob enfoque interdisciplinar.

Mas a proposta vai além: para uma segunda fase, está sendo preparado um levantamento simultâneo em cinco grandes centros urbanos de outros países. Essa etapa pretende ampliar a análise, levando os questionários para serem aplicados também em Detroit, Pequim, Cidade do Cabo e Varsóvia. A pesquisa será realizada a cada dois anos e tem o objetivo de comparar o comportamento das numerosas populações de grandes centros urbanos. “Realizaremos uma pesquisa longitudinal, que possibilitará uma análise de como se manifestam, por exemplo, as desigualdades sociais em cada um deles e quais os níveis de qualidade de vida dessas cidades”, afirma Neuma.

Transparência

Utilizando o survey – metodologia de investigação por amostra probabilística, com alto grau de confiabilidade –, a proposta do Social Hubble é, segundo Neuma Aguiar, acompanhar as mudanças que vão se processar em Belo Horizonte e em outros centros urbanos, ao longo do tempo, e oferecer aos governantes uma base confiável de dados para que possam se orientar melhor na aplicação dos recursos públicos. Uma busca, portanto, de transparência ética na administração do Estado.

De acordo com a pesquisadora, a amostra probabilística é muito mais confiável que as amostras por cotas utilizadas por institutos privados de pesquisa. A socióloga critica as generalizações feitas a partir de apurações com “meia dúzia de pessoas” e as teorizações a que se propõem algumas instituições, também com base em dados precários.

Escolaridade, o mapa da mina

Desempregado há 14 meses, o segurança Carlos Alberto de Souza perdeu a chance de um emprego por causa de sua baixa escolaridade. Aprovado em processo seletivo para ocupar um cargo numa grande empresa de Belo Horizonte e, com documentação em punho, ele foi excluído por não ter diploma de nível médio. Como ele, centenas de trabalhadores buscam uma vaga no mercado de trabalho e são barrados pela falta de instrução.

O drama de Carlos Alberto ilustra um módulo do “Social Hubble”, que mostra a influência do nível de escolaridade sobre as chances de a pessoa se empregar. A pesquisa constata que cada ano a mais de escolaridade eleva em 15,9% a chance de o trabalhador conseguir um emprego.

Essa constatação alerta sobre a necessidade de novos investimentos em educação num país em que os níveis de escolaridade são ainda baixos, se comparados aos de outros países emergentes. Segundo o Censo do IBGE de 2002, da população com mais de dez anos 31,4% têm até três anos de estudo. Apenas 15% da população têm de oito a dez anos de estudo concluídos e, na faixa de 11 a 14 anos de escolaridade, encontram-se apenas 14,9% da população. Já no grupo dos mais instruídos, com 15 anos ou mais de estudo (superior completo), a taxa é de apenas 4,1% da população.

Os números reforçam a importância da escolaridade para a inclusão no mercado de trabalho. “Trabalhamos com algumas variáveis de controle que não estão presentes em outros estudos, como o do IBGE”, afirma o sociólogo Jorge Alexandre, coordenador do módulo sobre Mercado de Trabalho e Desigualdades Sociais. As pesquisas conduzidas por ele acrescentam à questão da escolaridade as variáveis sexo, idade e raça, que permitem analisar, com maior profundidade, os fatores que contribuem para a ocupação de mão-de-obra.

O trabalho revela, por exemplo, que as diferenças de renda entre negros e brancos se devem às desigualdades educacionais entre os dois grupos. Os negros têm, em média, nível de escolaridade 50% menor que os brancos.

Cidadania rima com participação

O estudante de jornalismo Denilson Cajazeiro descobriu desde cedo, na militância política, a fórmula para resolver os problemas com que se defrontava. Em casa, na escola, no trabalho, Denilson percebeu que só depois de arregimentar colegas em torno de uma causa, era possível fazer valer suas reivindicações. Filho de um médico que disputou duas eleições, ele logo se engajou na Juventude Socialista e, hoje, além de eleitor consciente, Cajazeiro acredita que a participação é o único meio de mudar o rumo das coisas.

O que leva as pessoas a participar da vida política? No caso de jovens como Denilson, a motivação é uma herança. Mas, e no caso dos filhos de pais que, ao contrário, vêem na política o mal maior? Respostas para essas indagações estão sendo buscadas por outro grupo de pesquisadores do projeto Social Hubble. Trata-se do módulo que investiga a cultura cívica, coordenado pela professora do Departamento de Ciência Política (DCP/UFMG), Fátima Anastasia.

Participação política é um conceito amplo, que vai do simples ato de votar ao engajamento partidário e à militância, assim como a outras formas de adesão a causas de cunho político-social. “É difícil afirmar se o nível de participação aumentou, ou não, porque ela pode variar da mera presença como espectador a formas bem mais ativas”, avalia Fátima Anastasia. Segundo ela, o envolvimento político ativo – aquele em que o indivíduo investe pessoalmente na militância, indo a reuniões e assembléias – é mais fácil de medir. Mas aqueles que contribuem de forma mais indireta também são atores políticos, embora sua participação seja mais difícil de se mensurar.

Na elaboração dos questionários, os pesquisadores procuraram captar a cultura de participação política na RMBH em suas diversas manifestações, verificando o envolvimento formal e informal dos cidadãos em instituições tradicionais (as políticas, na acepção do termo, como partidos, associações comunitárias, sindicatos, entidades de defesa dos direitos humanos, e as de natureza associativista: esportivas, filantrópicas, de auto-ajuda ou religiosas), bem como as chamadas instituições híbridas (formadas por representantes do Estado e da sociedade civil, como acontece na elaboração do Orçamento Participativo).

“A hipótese central que orientou a nossa investigação foi a de que a decisão de participar, ou não, da ação coletiva depende da interação entre as motivações do ator e o contexto socioeconômico em que ele está inserido”, ressalta Fátima Anastasia. Assim, as questões foram formuladas com o objetivo de delinear o perfil dos participantes e das entidades, a partir de suas trajetórias e de suas interações sociais.

Instituições fortes

No Brasil, ao contrário do que se poderia imaginar, os índices de participação política são relativamente altos. De acordo com o professor Leonardo Avritzer, do Departamento de Ciência Política (DCP/UFMG), o país consolidou, a partir da Constituição de 1988, um conjunto de instituições que criaram espaços de atuação na vida coletiva. “A institucionalização dos orçamentos participativos e dos conselhos de Assistência Social, por exemplo, tem grande peso no aumento da participação política”, afirma. Em Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Recife, cerca de 200 mil pessoas envolvem-se nas assembléias dos Orçamentos Participativos.

Motivações

O objetivo dessa pesquisa é contribuir para o debate sobre os motivos que levam os indivíduos a participar, ou não, dos processos de ação coletiva. Para John Elster, um dos principais teóricos da ação coletiva, uma combinação de motivações – egoístas e normativas, racionais e irracionais – produzem a ação coletiva. “Se tomadas separadamente, essas motivações não seriam capazes de produzi-la”, teoriza Elster.

Para identificar essas motivações, os pesquisadores prepararam alguns blocos de perguntas. Em um deles, tentou-se apurar as motivações egoístas, que movem os indivíduos interessados em algum benefício, seja material ou intangível. Um segundo bloco procurou medir outra razão para a atuação política: a participação orientada por normas e valores éticos, como a vontade de ajudar os outros.

Para a cientista política Fátima Anastasia, os primeiros cruzamentos de dados já permitem a comprovação das hipóteses de que a participação política é uma variável dependente das condições sociais e de que a ação coletiva é resultante de um mix de motivações. Assim, há uma forte associação entre as razões do envolvimento político e as chamadas variáveis de background (escolaridade, informação política e renda). O maior impacto verificado pela análise foi no nível de informação política. Quanto maior esta, maior o envolvimento. “Num segundo momento da análise, vamos introduzir variáveis de controle para mensurar a robustez dessa relação” afirma Anastasia.

Sobre o mix de motivações, tanto para a participação política como para o associativismo civil, o “altruísmo” e a “orientação normativa” aparecem entre as motivações mais citadas pelos entrevistados. Porém, com a introdução das variáveis “renda” e “escolaridade”, há uma tendência de diminuição do altruísmo como motivação. “Esse comportamento suscita algumas hipóteses instigantes, que precisamos analisar com mais cuidado”, afirma Fátima Anastasia.

Pluralidade da fé

A diversidade religiosa da população da RMBH não difere da brasileira, apontada em estudos como o do IBGE, conforme constatou outro módulo da Pesquisa BH Área Survey. Mas essa pluralidade é relativa e amplamente dominada pelas tradições cristãs, que perfazem 80,1% das crenças admitidas pelas pessoas ouvidas na amostra. Coordenado pelo professor Alexandre Cardoso, o levantamento procurou conhecer tanto as religiões a que as pessoas se vinculam, como as crenças e o grau de envolvimento delas em atividades religiosas.

Alexandre Cardoso explica que um dos procedimentos éticos adotados na elaboração dos questionários foi, por exemplo, o de perguntar ao entrevistado sobre seu pertencimento religioso só depois de indagar suas crenças e práticas religiosas. Isso, segundo o professor, evita constrangimentos à pessoa que, por já ter respondido que era católica, receie revelar sua crença em feitiços ou jogos esotéricos. Essa ordenação das perguntas resultou, por exemplo, num índice de declarações de afiliação ao espiritismo duas vezes superior às reveladas pelo Censo do IBGE – 4,6% a 2,3%.

A pesquisa também revela que a diferença entre católicos e protestantes é menor que a detectada pelo IBGE. Há, segundo o estudo, 22,9% de evangélicos e 63,8% de católicos na Região Metropolitana de BH (43,4% de praticantes e 20,4% de não-praticantes). O Censo do IBGE apurou 75% de católicos e 15% de evangélicos.