Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

artigo

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética

César Guimarães
Professor do departamento de Comunicação Social da Fafich

Joacélio Batista da Silva

Quando abordamos as relações entre ética e comunicação, pensamos logo na correlação – freqüentemente desigual – entre os poderes e os limites da atuação da mídia, tomada em seus diferentes suportes materiais, gêneros e regimes discursivos: do jornal impresso aos programas de auditório, do telejornal aos reality shows. Diante da constatação de que atualmente alguns dos poderes midiáticos – a exibição espetacular e a ficcionalização do banal – parecem não conhecer limites, procuramos nos valer de um conjunto de exigências e regras capazes de regular o que a mídia pode nos mostrar e dizer (e de que modo, sob qual forma), os domínios em que ela pode penetrar ou não, e que fenômenos e problemas ela deve tornar visíveis, não se entregando nem à omissão nem ao encobrimento. Eis alguns dos elementos que poderiam constar de um possível tratado dos deveres destinado a regular o exercício das profissões midiáticas e as rotinas de trabalho nos meios de comunicação.

Entretanto, por mais que esses deveres e obrigações da mídia sejam lembrados e defendidos pelos conselhos de ética profissionais (com seus respectivos códigos), por entidades políticas ou jurídicas, por organizações não-governamentais que atuam na esfera pública e pelos próprios leitores e espectadores – os mais atentos e descontentes –, eles são continuamente subjugados pela pressão econômica e pelos interesses estratégicos manejados na guerra pela audiência e na disputa com a concorrência. No caso particular da televisão, presenciamos um estranho hibridismo de gêneros, em que o show surge no noticiário policial vespertino, a notícia no programa de entretenimento, a propaganda no programa de entrevistas. E isso sem mencionar o discurso publicitário, insidioso, quase onipresente, que surge até mesmo no centro da notícia, muitas vezes guiada pela espetacularização e pela vontade de transformar leitores e espectadores em voyeurs seduzidos pelo suspense calculado, à espera do gozo proporcionado pela aparição abrupta do acontecimento – banal ou trágico.

Todos nós temos muitos motivos para manifestar nossa recusa diante daquilo que a televisão nos oferece cotidianamente: a encenação – muitas vezes próxima da comédia pastelão – de dramas existenciais extraídos de situações de carência absoluta, desamparo ou violência; a crueldade naturalista na exibição do sofrimento; a figura autoritária dos apresentadores do noticiário policial, que reduzem a lei a uma punição visível, se possível, feita diante das câmeras, pretensamente capaz de expiar, exemplarmente, os “males” da sociedade, ou, então, aquela outra, mais branda, do repórter-investigador que não hesita em vestir o jaleco branco do médico-legista e passeia à vontade entre cadáveres, manchas de sangue e corpos desfigurados. Tudo isso é insuportável, no limite do abjeto ou do grotesco, essa aparição atual – mas sempre horrenda – da figura mitológica e monstruosa da Medusa, com seus cabelos aureolados de serpentes e seu olhar petrificador. Em sua manifestação midiática, a Medusa exibe, agora, a dura realidade dos excluídos de toda sorte, dos fracos, dos pobres, de todos os turistas da desolação, segundo a expressão de Virilio: os migrantes forçados, os fugitivos das guerras ou das catástrofes, as populações de refugiados sem abrigo...

Apesar do esforço incessante do espetáculo televisivo para transformar toda aparição de alteridade em figura reconhecível, eis que o estranho, o anônimo, o ordinário, quanto mais banido ou caçado de certos espaços da vida social, mais se manifesta nas imagens televisivas – ainda que execrado, tornado objeto de riso ou de piedosa aquiescência às suas reivindicações, que, paradoxalmente, só nos aparecem em função da visibilidade criada pela mídia. Diante do grotesco ou do abjeto, as declarações de indignação e assombro tornam-se numerosas, alardeadas não apenas pelos leitores e espectadores, mas também – com mais sofreguidão e retórica – por críticos e especialistas, alguns deles encarregados, pela própria mídia, de fazer sua (auto) crítica. É nessas ocasiões que as vozes indignadas pronunciam o seu julgamento de que “isso não é ético!”

Certamente, no que diz respeito à conduta individual dos profissionais, é flagrante, no mais das vezes, sua submissão aos imperativos do sensacionalismo e outros interesses mercadológicos mais estreitos. Porém, não basta denunciar o quanto os códigos de ética profissionais são frágeis diante da racionalidade estratégico-instrumental das organizações midiáticas; o que é preciso é compreender de que maneira os discursos midiáticos, em sua variedade de gêneros e de contratos comunicativos firmados com o receptor, transgridem ou se adaptam aos valores, representações e sentidos que concedemos a um mundo de experiências compartilhadas – o que constitui um ethos, precisamente.

Quando a mídia explora os chamados “tipos populares” nas mais variadas situações, do assistencialismo ao riso mais zombeteiro, passando pela condenação moral, a crítica conduzida por especialistas – pesquisadores, intelectuais ou comentaristas midiáticos –, assume comumente duas figuras extremas e opostas: a tentativa de legislar sobre o (mau) gosto da cultura de massa televisiva, procurando levá-la a sério apenas em razão de suas melhores realizações – mas condenando-a em razão da barbárie trazida pelo populacho –, ou, então, o desprezo elitista e esnobe diante das tentativas de modificar essa forma “bastarda” de cultura. O jornalista Marcelo Coelho não escreveu, um dia, que, na televisão, preferia “qualquer mondo cane a um debate com Chomsky”? (As coisas não melhorariam se imaginássemos um concerto do pianista Nelson Freire no Programa da Hebe...)

Para escapar a essas duas posições dicotômicas e excludentes, podemos muito bem recorrer, em diferentes âmbitos – do campo profissional à intervenção de grupos organizados no domínio da esfera pública – à discussão de normas regulamentadoras da ação e do discurso dos meios de comunicação, procurando elaborar consensualmente exigências éticas, jurídicas e, até mesmo, estéticas para sua atuação. Nesse caso, trata-se de efetuar uma crítica não-prescritiva da mídia, dotada de uma forma mais mundana, isto é, mais próxima dos valores elaborados pelo público, mais porosa à mobilidade da vida social, sem pretender julgar ou indicar como essa deve ser. Medidas concretas podem surgir dessa perspectiva, como entre outras, a criação de um ombusdman para o telejornal e – por que não? – para outros gêneros da TV aberta, tal como já existe nos jornais impressos. Essa figura poderia, quem sabe, tornar a TV menos impermeável às críticas, proporcionando uma interlocução com o público menos imantada às estratégias de identificação.

Porém, a dimensão ética das práticas comunicativas midiáticas possui um alcance mais vasto e mais complexo. Se é o ethos, na sua dimensão instituinte, que fornece os princípios axiológicos da sociabilidade, então, é nas formas atuais de vida, compartilhadas com uns e separadas de tantos outros, que devemos buscar os parâmetros para compreender melhor qual é este outro mundo que a mídia faz aparecer em seu horror. Em vez de buscar extirpá-lo sem contemplá-lo frontalmente – tal como fez Perseu diante da Medusa –, em nome de ideais de pureza, de correção, de beleza e de uma ética por demais endividada com o nosso mundo, deveríamos nos sentir interpelados – ainda que com um certo mal-estar – por essas formas muitas vezes bizarras de alteridade. A Medusa não está na tela, mas ao nosso lado, disfarçada na figura desses tantos outros que não nos são próximos – nem no espaço nem simbolicamente. A televisão, por um ângulo oblíquo, nos faz ver que, com eles dividimos um território, um lugar, uma cidade, um país...

Parece-nos que as reivindicações de uma crítica da mídia televisiva que se quer orientada por parâmetros éticos deveria ser capaz de apreender a contínua passagem entre duas figurações ou faces assumidas pela Medusa: de um lado, – como escreveu Roland Barthes –, para aqueles que se interessam pelos signos, a Górgona é a doxa, o sentido evidente, opressivo, a imagem petrificadora, deformada e deformadora; o dinamismo da vida social enquadrado por uma representação fixa, diríamos; por outro lado – como escreveu Paulo Leminski –, para aqueles que se interessam pela força viva de fabulação que irriga os mitos, a Medusa não é senão uma das formas da multiplicidade do real, a perpétua metamorfose de uma coisa em outra, metamorfose, forma da fábula, fome de fábulas – mobilidade incessante da vida social em suas práticas, narrativas, imagens, discursos... Talvez a espada de Perseu (que lhe fora dada por Hermes, o deus da comunicação) não seja suficientemente afiada para cortar essas duas metades de modo rigorosamente exato.