Revista da Universidade
Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004
Joaquim Antônio César Mota
Professor do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina
Mateus Gomes Pedrosa |
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A atual discussão sobre clonagem, terapêutica e experimental, assim como a questão de quais pacientes em coma profundo devem viver e quais devem morrer e de quem é essa decisão, aguçam o impacto da biotecnologia na vida cotidiana. Recombinação genética, seqüenciamento de DNA, novas drogas modificadoras do comportamento e de performance atlética, técnicas de fertilização in vitro e de manutenção de processos vitais, entre outros, modificam, alguns deles de forma irreversível, os seres humanos.
Aumentar nossa capacidade de atuar sobre a vida traz consigo uma maior responsabilidade sobre as conseqüências de nossos atos. Quanto mais avançada a biotecnologia, mais intensa e extensivamente ela é capaz de modificar a vida, os seus ônus sendo proporcionais aos seus bônus. Há um controle crescente sobre vários processos da vida, porém não conhecemos todas as conseqüências dessas intervenções, quer no corpo humano, quer nas nossas relações sociais. Várias aplicações da Engenharia Genética propiciam a predição e a correção de características não desejáveis no embrião e no feto, assim como a possibilidade de uma “eugenia doce”, com a perda do maior patrimônio biológico da espécie humana, a sua diversidade genética, e a discriminação dos excluídos dessa seleção.
Terapia versus melhoramento, eis a questão. O propósito da medicina é de tratar ou de melhorar o corpo humano? Restaurar a normalidade, o que quer que isso signifique, ou ultrapassar o normal? Essas ambigüidades são exacerbadas com o crescimento da biotecnologia. Manter um paciente vivo graças a aparelhos pode significar tanto a chance de reversão do quadro, até então fatal, quanto apenas o prolongamento da agonia e do sofrimento, dele e de seus próximos. Drogas que aumentam a força muscular devem ser restritas a idosos e portadores de deficiências musculares ou seu uso estendido a atletas para melhorar sua performance? Testes genéticos em embriões a serem implantados devem servir apenas para prevenir doenças ou, também, para nos dar bebês melhorados? Pela associação de seleção genética e abortos seletivos podemos eliminar da espécie humana alguns genes, tais como os causadores da anemia falciforme, da doença de Tay-Sachs e inúmeros outros. Vale alertar que a seleção de gênero, talvez por ser tecnicamente mais fácil, já é praticada, pelo aborto seletivo, em várias culturas e países. Preservar a diversidade – genética, fenotípica, cultural e ambiental – é essencial para a humanidade.
A verdade é que o saber especializado produz profissionais perigosamente incultos. Curiosamente, essas preocupações foram manifestadas por Ortega y Gasset, de uma forma quase profética, no início do século XX. Dizia ele que a ciência experimental progrediu, em parte, devido ao trabalho de homens incrivelmente medíocres, encerrados nas celas de seus laboratórios. Esses sábios –ignorantes, se sabem tudo sobre suas especialidades, ignoram formalmente tudo quanto não faz parte delas. E tendem a comportar-se, em todas as questões que transcendem ao seu saber, com a arrogância de quem, em seu campo, é um sábio.
Essa constatação de Ortega y Gasset aponta um caminho para a biotecnologia. Moratórias científicas, como a proposta em Asilomar, na década de 1970, ou proibições radicais, como a tentada pelo governo Bush, nunca foram obstáculos para a curiosidade humana, pois somos capazes de realizar tudo aquilo que sonhamos. O debate é imperativo, pois apenas democratizando o conhecimento e a tecnologia, bem como a decisão de como e onde usar seus produtos, será possível evitar que a biotecnologia seja um instrumento de dominação de poucos. Por isso, a discussão das dimensões éticas da atuação científica diz respeito a todos os cidadãos.
Se o domínio da técnica, pela sua complexidade e especificidade, é do âmbito dos especialistas, as decisões políticas do que, como e quando fazer ciência devem ser de todos. E o papel de uma Universidade Pública, como pólo tecnológico e como difusora desses conhecimentos e partícipe da consolidação de uma cidadania plena e irrestrita, é crucial nesse processo. Fazer ciência eticamente correta é um dos maiores desafios de uma instituição científica, pois de, há muito, já sabemos que ciência sem consciência não é mais que a ruína da alma.