Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

artigo

A biotecnologia na área da saúde

Joaquim Antônio César Mota
Professor do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina

Mateus Gomes Pedrosa

A atual discussão sobre clonagem, terapêutica e experimental, assim como a questão de quais pacientes em coma profundo devem viver e quais devem morrer e de quem é essa decisão, aguçam o impacto da biotecnologia na vida cotidiana. Recombinação genética, seqüenciamento de DNA, novas drogas modificadoras do comportamento e de performance atlética, técnicas de fertilização in vitro e de manutenção de processos vitais, entre outros, modificam, alguns deles de forma irreversível, os seres humanos.

Aumentar nossa capacidade de atuar sobre a vida traz consigo uma maior responsabilidade sobre as conseqüências de nossos atos. Quanto mais avançada a biotecnologia, mais intensa e extensivamente ela é capaz de modificar a vida, os seus ônus sendo proporcionais aos seus bônus. Há um controle crescente sobre vários processos da vida, porém não conhecemos todas as conseqüências dessas intervenções, quer no corpo humano, quer nas nossas relações sociais. Várias aplicações da Engenharia Genética propiciam a predição e a correção de características não desejáveis no embrião e no feto, assim como a possibilidade de uma “eugenia doce”, com a perda do maior patrimônio biológico da espécie humana, a sua diversidade genética, e a discriminação dos excluídos dessa seleção.

Terapia versus melhoramento, eis a questão. O propósito da medicina é de tratar ou de melhorar o corpo humano? Restaurar a normalidade, o que quer que isso signifique, ou ultrapassar o normal? Essas ambigüidades são exacerbadas com o crescimento da biotecnologia. Manter um paciente vivo graças a aparelhos pode significar tanto a chance de reversão do quadro, até então fatal, quanto apenas o prolongamento da agonia e do sofrimento, dele e de seus próximos. Drogas que aumentam a força muscular devem ser restritas a idosos e portadores de deficiências musculares ou seu uso estendido a atletas para melhorar sua performance? Testes genéticos em embriões a serem implantados devem servir apenas para prevenir doenças ou, também, para nos dar bebês melhorados? Pela associação de seleção genética e abortos seletivos podemos eliminar da espécie humana alguns genes, tais como os causadores da anemia falciforme, da doença de Tay-Sachs e inúmeros outros. Vale alertar que a seleção de gênero, talvez por ser tecnicamente mais fácil, já é praticada, pelo aborto seletivo, em várias culturas e países. Preservar a diversidade – genética, fenotípica, cultural e ambiental – é essencial para a humanidade.

A verdade é que o saber especializado produz profissionais perigosamente incultos. Curiosamente, essas preocupações foram manifestadas por Ortega y Gasset, de uma forma quase profética, no início do século XX. Dizia ele que a ciência experimental progrediu, em parte, devido ao trabalho de homens incrivelmente medíocres, encerrados nas celas de seus laboratórios. Esses sábios –ignorantes, se sabem tudo sobre suas especialidades, ignoram formalmente tudo quanto não faz parte delas. E tendem a comportar-se, em todas as questões que transcendem ao seu saber, com a arrogância de quem, em seu campo, é um sábio.

Essa constatação de Ortega y Gasset aponta um caminho para a biotecnologia. Moratórias científicas, como a proposta em Asilomar, na década de 1970, ou proibições radicais, como a tentada pelo governo Bush, nunca foram obstáculos para a curiosidade humana, pois somos capazes de realizar tudo aquilo que sonhamos. O debate é imperativo, pois apenas democratizando o conhecimento e a tecnologia, bem como a decisão de como e onde usar seus produtos, será possível evitar que a biotecnologia seja um instrumento de dominação de poucos. Por isso, a discussão das dimensões éticas da atuação científica diz respeito a todos os cidadãos.

Se o domínio da técnica, pela sua complexidade e especificidade, é do âmbito dos especialistas, as decisões políticas do que, como e quando fazer ciência devem ser de todos. E o papel de uma Universidade Pública, como pólo tecnológico e como difusora desses conhecimentos e partícipe da consolidação de uma cidadania plena e irrestrita, é crucial nesse processo. Fazer ciência eticamente correta é um dos maiores desafios de uma instituição científica, pois de, há muito, já sabemos que ciência sem consciência não é mais que a ruína da alma.