Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

Violência & criminalidade

Construindo a solidariedade comunitária

Projeto coordenado pelo Crisp alia ações de inclusão social e repressão ao crime

Parece consensual: prender bandidos e viabilizar mecanismos de proteção social, melhorar a infra-estrutura de áreas pobres e as alternativas de trabalho e renda podem resultar em menores índices de violência e criminalidade. Conseguir isso, no entanto, demanda o levantamento de dados para elaboração de diagnósticos e para a articulação das ações e dos agentes envolvidos, em especial os da própria comunidade.

Foi por conta dessas credenciais que o projeto Fica Vivo, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG, conseguiu reduzir em cerca de 50% o índice de homicídios no Aglomerado Morro das Pedras – umas das regiões mais violentas de Belo Horizonte. Ali, no início da implantação do projeto, em agosto de 2002, ocorriam metade dos assassinatos registrados na cidade. O Fica Vivo combina iniciativas de repressão à criminalidade com ações de inserção social por meio da ocupação de mão-de-obra, geração de renda, atendimento à saúde, educação e lazer.

Giane M. Figueirêdo

Experiência piloto

A exemplo de outros grandes centros urbanos, a violência na Capital mineira também está concentrada, em boa parte, nos aglomerados de vilas e favelas. Os 17 homicídios registrados no Morro das Pedras, no período de março a julho de 2002, denunciavam uma situação de medo da violência e de desesperança que ameaçava os cerca de 30 mil moradores da comunidade. A ação do Crisp foi pontual: era preciso “estancar” o crime naquela região. Se bem-sucedida, a metodologia poderia ser estendida a outros aglomerados violentos da cidade.

O resultado veio cinco meses depois. No período de agosto a dezembro de 2002, os homicídios foram reduzidos a nove. Se ainda não havia motivo para comemorar, os dados já permitiam vislumbrar o sucesso da intervenção. “O combate à violência só pode dar resultados se combinarmos dois fatores: fechar a torneira do tráfico de drogas e promover ações capazes de absorver e envolver a comunidade local em práticas sociais solidárias”, diz Claúdio Beato, coordenador do programa.

De acordo com o sociólogo, a criminalidade em Belo Horizonte está diretamente relacionada ao tráfico. Além dessa relação quase umbilical, a maioria dos homicídios, explica Beato, envolve jovens de 14 a 24 anos – ora como vítimas, ora como agentes. Essa informação motivou os pesquisadores a agir com rapidez. “Inibir a criminalidade significa, antes de tudo, oferecer aos jovens uma alternativa ao mundo do crime”, acredita Beato.

Dessa urgência, nasceu o Fica Vivo, resultado de um grande “mutirão social”, que envolve a sociedade civil e o Poder Público, por intermédio de instituições como a Polícia Militar, a Universidade (pelo Crisp), a Prefeitura de Belo Horizonte, o Ministério Público, a Secretaria de Defesa Social, o Conselho de Segurança Pública (Consep).

Justamente por causa dessa capacidade de mobilização social, “o projeto inaugurou um novo modelo de enfrentamento da violência”, opina o tenente-coronel Renato Vieira de Souza, chefe da Seção de Emprego Operacional do Estado-Maior da PMMG. “Ele carrega um forte caráter preventivo, pois é baseado na participação comunitária e envolve o empresariado e organizações sociais não-governamentais”, justifica.

Para Renato de Souza, o Fica Vivo pode servir de modelo para a formulação de políticas públicas de longo prazo, em que a redução dos homicídios e da violência seja apenas um dos resultados visíveis. Mas adverte: “O projeto não resolve todas as mazelas sociais. Não podemos desprezar estratégias tradicionais elaboradas e executadas por órgãos da Defesa Social”.

Os bons resultados do projeto Fica Vivo levaram o governo de Minas a estender sua metodologia para 21 municípios mineiros que apresentam índices de criminalidade mais elevados. Implantado com recursos das fundações Ford e Hewlett, o Fica Vivo foi premiado pela ONU e pelo Banco Mundial como modelo de boas práticas de prevenção da criminalidade.

Novas esperanças

Na comunidade do Morro das Pedras, o projeto ajudou a construir uma sólida base sobre a qual brotam, a cada dia, novos projetos de proteção social. Juntos, líderes comunitários, dirigentes de escolas e moradores do aglomerado, estimulados pela atuação do Crisp na comunidade, e, agora, pela ação do Estado, que atua como gestor do programa, formulam propostas de geração de emprego, renda, lazer e cultura para a população local.

Com o suporte do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), de empresários e fundações, o Crisp está abrindo frentes de ação social para atuar paralelamente ao Fica Vivo. Uma delas é o programa Férias o ano inteiro, coordenado pela major Mírian Assumpção de Lima, que atende cerca de 200 pessoas por meio de oficinas de dança, percussão, teatro, capoeira, estética, mecânica e esportes, realizadas aos sábados e domingos.

O projeto oferece, também, alimentação (café da manhã, almoço e lanche vespertino) para os participantes e recruta seus professores na própria comunidade. Os recursos vêm da Fundação Marista e da Ashoka, instituição internacional que financia trabalhos comunitários.

Para Herculano de Moura França, líder comunitário no Morro das Pedras, a proposta do Férias o ano inteiro pode desdobrar-se em um grande programa de geração de mão-de-obra e renda. “À medida que os participantes dos cursos se capacitarem, montaremos pequenas oficinas para que eles possam ganhar algum dinheiro”, planeja. Salões de beleza, grupos de confecção e pintura estão na mira do líder comunitário que também já pensa em introduzir uma oficina de reciclagem.

Economia solidária

Mobilizada para os problemas e consciente de que a violência não se combate com iniciativas pontuais, a comunidade do Morro das Pedras sabe que é preciso mover-se por si mesma, embora ainda dependa de recursos externos. Um projeto de economia solidária está em gestação no aglomerado. Idealizado pela professora Maria de Fátima Silveira, diretora da Escola Estadual Nossa Senhora do Belo Ramo, o projeto, já formatado para buscar patrocínio, prevê a compra, no atacado, de alimentos e bens de consumo para abastecer as cerca de 500 famílias residentes no aglomerado.

A proposta parte do princípio de que, comprando em consórcio, as famílias garantirão melhores preços. “Imaginem a economia que as famílias poderão fazer todo mês parando de comprar aqui e ali. O dinheiro que sobrar poderá ser revertido para atender outras necessidades”, acredita Maria de Fátima.

‘O Fica Vivo também ajudou a amadurecer uma certeza: a de que nada acontece sem a participação e o envolvimento de uma ampla rede de interlocutores sociais. “As coisas só funcionam se forem realizadas em conjunto. Só a comunidade sabe o seu próprio potencial e, só desenvolvendo esse potencial, os projetos podem durar e dar algum resultado”, acredita Fátima, que se diz cansada de testemunhar o fracasso de experiências impostas de fora, de cima para baixo.

Herculano de Moura concorda. Para ele, qualquer solução deve levar em conta os anseios, problemas e potencialidades da comunidade local. “Todas as oficinas que oferecemos foram sugeridas pelos moradores. É preciso valorizar a cultura local e aproveitar aquilo que as pessoas sabem fazer”, afirma.

O fórum comunitário, que preparou a criação do Fica Vivo e que se reúne todo mês, tem sido o melhor instrumento para compreender o que se passa no Morro das Pedras. “Esse fórum ajuda a identificar o que as pessoas querem e têm capacidade para fazer, para, então, montarmos oficinas e cursos profissionalizantes”, afirma Herculano. Atualmente, ele coordena o projeto Dois Toques na Bola, que reúne, nos finais de semana, 70 crianças na escola Belo Ramo para atividades de lazer e oficinas.