Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

artigo

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso?

Ricardo Fenati
Professor do departamento de Filosofia da Fafich

Mateus Gomes Pedrosa

A ciência, traço que singulariza as sociedades modernas, vem sendo analisada sob os mais diversos ângulos. Desde o enfoque mais clássico da epistemologia ao olhar mais recente dos estudos culturais, multiplicam-se os estudos sobre a atividade científica. Entretanto, em nossos dias, uma perspectiva, a da ética, exerce particular interesse, associada que está ao espetacular desenvolvimento contemporâneo das ciências da vida.

Alternativas inéditas, muitas sequer sonhadas, são, hoje, parte do cotidiano. Possibilidades como a preservação duradoura da vida em condições artificiais, a intervenção em fetos ou as que decorrem do amplo repertório de ações ligadas à clonagem evidenciam a expansão do nosso poderio científico-tecnológico. Poderio que nos inscreve, de imediato, no horizonte ético: podendo fazer, devemos fazer?

Que a reflexão ética encontre algum abrigo nas instituições ligadas à ciência é louvável. Os comitês de ética regulamentadores das pesquisas que envolvam humanos, o crescente cuidado no trato dos animais associados à pesquisa científica, a atenção e a sensibilidade com que são vistas as questões relativas à intervenção no meio ambiente são indicadores de que estamos, felizmente, diante de um novo cenário. Mas, se, de um lado, devemos celebrar o reaparecimento da temática ética, na medida em que se localiza no campo da ação humana o que parecia um destino inescapável, por outro lado, cabe perguntar sob que condições é razoável esperar uma aproximação permanente entre a ciência e a ética.

Ética é, hoje, um termo “quente”, a que todos buscam se associar. O termo é vastamente empregado na imprensa, freqüenta discursos oficiais de matizes distintos, é corrente no meio empresarial e, o que não deixa de ser surpreendente, começa a invadir a linguagem do dia-a-dia. Caracterizar alguém ou algum comportamento como não-ético é uma forma imediata e irrecorrível de condenação. Mas esse acordo rápido e fácil a respeito de um tema sabidamente controverso não deve nos enganar.

Ética, entre outras coisas, significa restrição. O recurso a valores, constitutivos de qualquer agenda ética, implica aceitar proibições e limites. Caso existisse, uma sociedade inteiramente permissiva levaria à supressão da dimensão ética, que se tornaria supérflua num ambiente onde tudo fosse tolerado.

Se aceitarmos a associação entre a atitude ética e o estabelecimento de alguma espécie de limite, que aproximações podemos fazer entre a ética e a ciência, entre os procedimentos éticos e a busca do conhecimento? Sociedades tradicionais, ordenadas de um ponto de vista religioso, sempre se pautaram pelo reconhecimento de limites intransponíveis, derivados da afirmação da finitude humana. Sociedades dessa espécie não têm dificuldades para admitir a existência de áreas indevassáveis ao conhecimento.

Outro é o contexto das sociedades a que pertencemos. A criação dos campos científicos na modernidade ocidental é decorrência, entre outros fatores, da ideologia que preconiza a defesa da liberdade mais plena no que diz respeito ao conhecimento. A concepção moderna de ciência, a que estamos, ainda hoje, associados, é inseparável da progressiva reafirmação do princípio da autonomia da pesquisa e da rejeição, inegociável, da tutela, seja religiosa, seja política.

Os evidentes benefícios derivados da ciência ao longo da modernidade desembocaram na aceitação, quase sempre irrefletida, mas nem por isso menos eficaz, da doutrina de que a busca da verdade, em curso na ciência, é a rota que conduz, rápida e seguramente, ao bem. Eventuais indecisões ou ambigüidades apenas têm lugar – é o que se diz ainda hoje – quando está em questão o uso da ciência.

Separando a ciência do seu uso, de suas aplicações, somos cada vez mais ciosos dos limites atinentes à intervenção humana na natureza. Certamente – e isto já faz parte do currículo de nossas escolas de ensino fundamental e médio –, há coisas que não devemos fazer. Reconhecemos, por exemplo, ciclos objetivos na natureza e procuramos obedecer a eles. Entretanto, uma coisa é reconhecer limites no nível da ação, aceitar normas e padrões éticos na nossa relação com a natureza e proibir certas ações como inoportunas ou impróprias. Outra coisa muito diferente é reconhecer ou estabelecer limites ao conhecimento e não apenas à sua aplicação.

Mesmo desconsiderando que a fronteira entre a ciência e suas aplicações perde, cada vez mais, a antiga nitidez, como aceitar que existam verdades inoportunas ou impróprias? A verdade não desfrutaria de um salvo-conduto no campo da ética? Tal entendimento, ao que tudo indica, recebe contínua e justa confirmação por parte do material proveniente de episódios da história da ciência. Estudando casos como a condenação de Galileu na aurora da modernidade ou, já mais perto de nós, a desastrosa atuação de Lysenko na União Soviética, não parece mais prudente separar os domínios de validade da ciência e da ética? Pode ser. Entretanto, assim procedendo, a idéia de uma ética da ciência, no sentido preciso de um pacto em torno de valores a que a atividade de conhecimento deva se submeter, talvez seja uma meta, se desejada ou, mesmo, se não desejada, de cumprimento impossível. Ainda que essa conclusão possa nos desagradar, não é despropositada.

A busca da verdade, tal como, hoje, a entendemos nas modernas ciências ocidentais, é autolegitimadora, não tendo como ser objeto de uma ética. Escolhemos a ciência como a estratégia mais segura e conseqüente de obtenção da verdade. Nesse horizonte, quaisquer tentativas de compatibilizar ciência e ética, tais como as entendemos neste momento, parecem fadadas ao fracasso. À medida que desfrute de plena autonomia, talvez o conhecimento nos conduza a um beco sem saída. Escolhendo o cultivo da curiosidade como o mais alto dos valores, a nossa destruição pode vir a ser o preço a pagar. Entretanto, escolhendo uma impossível contenção, não estaríamos com a salvação garantida.

Impasses como esse têm um duplo valor: de um lado, assinalam a caducidade das antigas soluções; de outro, convidam a que a reflexão, nossa mais poderosa arma contra o desespero, se ponha, ainda uma vez, a trabalhar.