Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

artigo

Entre a prudência e o sonho

Telma Birchal
Professora do departamento de Filosofia da Fafich

Academias científicas de todo o mundo assinaram, em setembro passado, uma declaração manifestando-se contra a clonagem reprodutiva e a favor da clonagem terapêutica e de pesquisa. Contra a primeira, apresentam-se argumentos técnicos – como a grande possibilidade de má-formação do feto –, mas sobretudo argumentos que dão conta de que a produção de um clone humano esbarraria em “fortes objeções éticas, sociais e econômicas”, devendo, portanto, ser proibida.

Quanto à clonagem terapêutica e de pesquisa, os cientistas defendem sua liberação, limitada, porém, à produção de embriões “para a obtenção de células-tronco”. Esclarecem, ainda, que, nesse caso, “o blastocisto clonado jamais será implantado no útero”. Ou seja, não se trata de produzir clones desenvolvidos que funcionariam como “banco de órgãos”, como imaginam alguns, mas de interromper o desenvolvimento do embrião clonado num estágio bastante inicial, a partir do qual ele seria destinado à produção de células e tecidos para transplante ou para a pesquisa. O desenvolvimento desta técnica possibilitaria, por exemplo, a recuperação de pessoas atingidas pelo mal de Parkinson ou de Alzheimer, sem o risco da rejeição dos novos neurônios.

Este documento toca em dois pontos extremamente polêmicos, que dizem respeito a diferentes convicções morais e religiosas: a clonagem e a manipulação de embriões. Quanto ao segundo ponto, o que está em jogo é a produção de um embrião para fins outros que não o seu desenvolvimento como ser humano. Nesse caso, colocam-se as debatidas questões do estatuto do embrião – é, ou não, ser humano? – e do significado da interrupção de seu desenvolvimento – é, ou não, crime?

Quanto à clonagem, ela pode ser definida como a produção de um indivíduo humano – ou de um embrião humano – a partir de, apenas, um ser humano e não, de dois, como na reprodução natural. Surgindo como uma possibilidade em nossa história, a clonagem levanta a questão da “natureza humana” – o que é, afinal, o homem? A idéia que vem desde os tempos antigos – a de que o homem é um ser que se cria a si mesmo – ganha, hoje, um significado radical e, antes, desconhecido. “Brincar de Deus”, expressão usada para caracterizar as recentes biotecnologias, indica que o ser humano conquista aceleradamente os meios de ultrapassar algumas condições que definiam sua natureza, como a filiação, a vinculação a um corpo e a própria morte. Sendo assim, o homem deve, ou não, colocar limites ao seu poder? Em que ponto? Há uma humanidade, ou uma “natureza humana”, a ser preservada contra ela mesma? Essas são questões prementes e sobre as quais as opiniões se dividem.

Pedro José Nascimento Peixoto

Nesse campo de debate, a declaração dos cientistas recusa o “sim” e o “não” absolutos e opta pela tarefa, nem sempre evidente, de distinguir entre o devido e o indevido. Entendem que a cura de uma doença justifica a criação de embriões por clonagem e sua manipulação dentro de certos parâmetros. Ora, as outras alternativas seriam a liberação total da clonagem e da manipulação de embriões, ou a restrição absoluta de ambas as experiências. Esses extremos só seriam justificados no caso de um claro conhecimento do que seja a “natureza humana”, por um lado, e do estatuto do embrião, por outro. Ambas as questões, pelo menos atualmente, escapam ao domínio do conhecimento – e a meu ver escaparão para sempre, mas este é um outro assunto.

Ao prescreverem limites para a prática da clonagem e da manipulação de embriões, as academias não declaram intocáveis nem a “natureza humana”, nem o embrião, mas também não os banalizam. Isso porque recomendam o desenvolvimento de tecnologias, como a das células-tronco, que diminuem em muito a quantidade de embriões a serem produzidos para um determinado fim, assim como dispensam seu desenvolvimento por um tempo longo.

O documento dos cientistas tenta delimitar, distinguir, ordenar meios afins. A essa atitude, os antigos denominavam prudência. Prudência é um tipo de sabedoria que diz respeito às situações que nos põem diante de uma escolha, ou seja, em que algo permanece em aberto, não sabido de antemão. Sendo assim, a prudência não absolutiza as opções, mas tenta encontrar o “justo meio”, que não é um ponto fixo, mas varia com as circunstâncias. É uma sabedoria que não desconhece as injunções da vida prática, uma “sabedoria que calcula” e que avalia os ganhos e os riscos numa situação em que não se tem clareza sobre tudo.

A escolha dos cientistas é clara: proibir a clonagem reprodutiva, que pode ameaçar a própria identidade da espécie humana; permitir a clonagem terapêutica, que pode minimizar o sofrimento de muitos, mas que colocará, nas mãos do ser humano, um instrumento perigoso. A sabedoria maior, porém, está no reconhecimento de que se trata de uma situação que comporta uma escolha e não, de um destino já traçado.

Uma outra perspectiva ética, contudo, nos convida a dar um passo além da prudência e a indagar sobre nossos desejos e sonhos. Que sonhos nos habitam para que nos lancemos nessa empresa tão arriscada, de que, como nos avisam os presságios da ficção, pode resultar um mundo sem homens? Que sonho, senão o de uma vida sem dores, sem doenças e, quem sabe, sem morte; que desejo, senão o de afastar os imprevistos e os acidentes de conhecer e controlar o futuro? Esses sonhos nasceram com o próprio homem, muito antes da ciência ou da tecnologia; a ciência e a tecnologia, no entanto, apontam para sua realização efetiva, com seus meios de aliviar a dor, de prolongar a vida, de prever os acontecimentos e dominá-los, enfim, de afastar da vida humana tudo o que faz dela uma vida na terra e não nos céus.

Sobre esse sonho, lembro as palavras do filósofo Michel de Montaigne: “Nossa vida, como a harmonia do mundo, é composta de coisas contrárias e também de diversos tons: agradáveis e ásperos, agudos e graves, suaves e fortes. O músico que só apreciasse alguns o que pretenderia dizer? É preciso que saiba servir-se de todos e misturá-los. E nós, também, os bens e os males, que são consubstanciais à nossa vida. Nosso ser não pode existir sem essa mistura e uma parte dele não é menos necessária do que outra.”

Ao homem do século XXI, ele diria, como disse ao de seu tempo, que aceitar a vida em sua dualidade de prazer e dor é condição para vivê-la em sua plenitude. Todo prazer implica alguma dor, como toda saciedade exige a fome, e a condição para o usufruto da vida é o desgaste. Não se trata de uma defesa do sofrimento, mas de compreender que, ao recusá-lo, corremos o risco de recusar a própria vida. Que vida é essa, que se prolonga indefinidamente conservada numa geladeira e que não se sente a si mesma? Não é difícil de perceber que, hoje, a obsessão pela saúde, pela juventude e beleza eternas se torna numa nova escravidão e que aos males que afastamos se substituem outros, talvez maiores.

Assim, para além da pergunta, “como deve a humanidade agir para viver com saúde, para evitar a dor, para prolongar a vida?” – que encontra, a meu ver, uma boa resposta na prudência dos cientistas –, cabe uma outra pergunta, mais fundamental, sobre o significado desse desejo.