Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

artigo

O meio ambiente como bem comum

Rogério Parentoni
Professor de Ecologia do ICB

Francisco A. Coutinho
Mestre em Filosofia pela Fafich e doutorando em Educação pela Faculdade de Educação

É um truísmo afirmar que a conduta ética constitui a base sobre a qual relações sociais humanas civilizadas deveriam se apoiar. Nessa perspectiva, um dos sinais de maturidade de uma sociedade poderia ser o nível de conduta ética de seus cidadãos, independentemente da função que estes exerçam. Também é um truísmo afirmar que violações dos preceitos de conduta ética são tão comuns que se torna indispensável discutir a necessidade da aplicação de princípios éticos em quaisquer ramos de atividades humanas – na política, medicina, direito, psicologia, educação e também nas questões ambientais.

Vlad Eugen Poenaru

Uma das questões fundamentais sobre a ética ambiental diz respeito às circunstâncias em que os ecólogos – cientistas que estudam a estrutura e funcionamento da natureza viva – desempenham suas atividades e as conseqüências da aplicação dos resultados das pesquisas para o meio ambiente – relações complexas entre as atividades de sociedades humanas e os processos biológicos naturais. Entre tais relações, destacam-se as atividades dos ecologistas ou ambientalistas que lutam pela conservação da natureza e pelo desenvolvimento sustentável.

A abordagem presente não se restringirá apenas à ética ambiental, mas esta será analisada como um caso particular da ética na ciência. A abordagem inclui a reflexão sobre a postura profissional daqueles cientistas que pesquisam em um “vácuo social”, os alienados da realidade social em que desenvolvem suas pesquisas. Eles não se preocupam muito com a origem das verbas que utilizam e como os resultados de suas pesquisas serão usados. Tacitamente, assumem uma postura de neutralidade científica ao admitir que sua atividade é a de pesquisar; caberia a tecnólogos ou a políticos a decisão sobre as circunstâncias da aplicação dos resultados da pesquisa. A história das ciências abriga muitos exemplos de deslizes éticos de cientistas preocupados apenas com a descoberta de novidades científicas.

Algumas perguntas são necessárias para dar seqüência a essa análise: os cientistas deveriam decidir sobre o que pesquisar ou sua orientação seriam as necessidades sociais, inclusive as chamadas pesquisas estratégicas ou de defesa da soberania? Dito de uma outra forma, até onde vai a independência do cientista, haja vista que o desenvolvimento de seus estudos depende de verbas públicas ou da iniciativa privada, ambas sob a influência de ideologias particulares e, muitas vezes, conflitantes? Ao concorrer às verbas destinadas à pesquisa, o cientista deve ignorar as implicações éticas, muitas vezes não-explicitadas, que governariam sua concessão? Por outro lado, os cientistas que percebem jogadas antiéticas por detrás da concessão de verbas públicas ou privadas teriam responsabilidade moral sobre o uso que se fizer dos resultados e produtos de suas descobertas? No entanto, a fundamentação das respostas a essas perguntas demandaria a utilização de um espaço além do concedido para essa ocasião.

Contudo, essa análise e outras várias, de maior profundidade e abrangência, embora possam vir a ter uma certa utilidade, como subsídio para mudanças de atitude com respeito à cômoda posição de neutralidade científica, confrontam-se com uma realidade nada animadora. Como é possível esperar, em uma sociedade altamente competitiva e pouco colaborativa, que os indivíduos sigam condutas éticas? Até mesmo sociedades organizadas sob supostos preceitos teóricos igualitários falharam nesse intento. É também sintomático que certos ingênuos homens de ciência, ao final do século XIX – caso do evolucionista inglês Alfred Russel Wallace –, entusiasmados com o desenvolvimento científico, tenham se mostrado apreensivos com o fato de que esse desenvolvimento não estivesse resultando em aperfeiçoamento moral.

Esse conjunto de reflexões conduz à idéia de que seria premente a formação de profissionais socialmente responsáveis e imagina-se que isso poderia ser alcançado por meio da educação. A questão ética transita pelo reconhecimento de que o outro é um igual, embora único. Uma relação ética verdadeira só se estabeleceria sob o seguinte princípio: os dois pólos da relação são sujeitos e nenhum deles pode ser transformado, à revelia, em um instrumento da vontade alheia. No caso de uma ética ambiental, as relações intersubjetivas seriam balizadas pelo princípio de que o meio ambiente é um bem comum e extensível às gerações vindouras.

Essa perspectiva de desenvolvimento sustentável estaria a exigir um processo educacional efetivo, como o que se usa para ensinar o abecedário. Nesse processo, os valores adequados à concretização desse princípio deveriam estar em evidência para fundamentar a tomada de decisões que favoreçam o ambiente e a sociedade que dele depende. Espera-se que do processo educacional decorra a implantação de valores e atitudes que preparariam o cidadão para um futuro ambientalmente sustentável.

No entanto, em uma sociedade que privilegia a competitividade, o enriquecimento rápido e o consumo desenfreado, onde caberiam os valores que favorecessem a implementação de tal perspectiva? Surge uma questão básica: como se pode falar de uma educação para valores ambientais se o que falta são justamente esses valores? Em sua prática efetiva, como a escola deveria estar preparada para educar para valores conflitantes com as exigências de uma sociedade competitiva? Estariam os próprios alunos ou profissionais interessados em se imolar no mercado de trabalho em nome de elevados e nobres valores que os manteriam desempregados?

A despeito disso, esperançosos ingênuos e utópicos de todos os tempos não desistiram e não desistirão de buscar meios que facilitem a compreensão e a aplicação de regras de condutas éticas. Sejam estas quais forem, todavia, sua efetiva implementação dependerá mais da competência dos sistemas educacionais do que do desejo de um punhado de homens de boa vontade. Mas, novamente, como tornar competente, do ponto de vista ético, um sistema educacional em uma sociedade regida por um mercado financeiro que não se nutre exatamente de valores éticos? O desafio para implantação de condutas éticas em uma sociedade que valoriza o fútil é, portanto, um dos maiores desafios para um sistema educacional que alimente sonhos de justiça social.

A constituição de valores para uma ética ambiental talvez trafegue por outra via. Uma característica evidente relativa à produção do conhecimento, em nossa sociedade, é a sua complexidade. O conhecimento encontra-se de tal forma fragmentado, que é impossível a qualquer profissional dominar todo o saber de sua área específica. Portanto, o entendimento dessa situação pode demarcar uma via que dê passagem ao diálogo entre profissionais de áreas diversas diante da resolução de problemas complexos como os ambientais. É desse diálogo que surgiria a regulação das ações, pois nada melhor do que o conflito de idéias e propósitos para que sejam estabelecidos parâmetros de conduta ética. Além disso – e de maior relevância –, toda situação que acarrete tomada de decisões deveria ter a conivência da sociedade. A ética que se vislumbra, nesse caso, que nos perdoem os grandes sistemas filosóficos, não se fundamentaria em valores abstratos, eternos e universais, mas em interesses científicos e sociais igualmente estabelecidos e regulados pelo diálogo.