Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

artigo

Clonagem: limites e possibilidades

Sérgio D.J. Pena
Professor do departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB

Desde a divulgação, em fevereiro de 1997, do sucesso da clonagem da ovelha Dolly a partir da glândula mamária de uma ovelha adulta, iniciou-se um amplo debate que envolveu a comunidade científica e a sociedade em geral. O fulcro da discussão, obviamente, era o fato de que a clonagem de ovelhas sinalizava que, em um futuro próximo, talvez pudesse ser possível clonar seres humanos. Essa possibilidade gerou tanto entusiasmo quanto preocupação e a grande pergunta tornou-se: a clonagem deveria ser permitida, regulamentada ou banida?

É provável que o impacto da clonagem humana como técnica reprodutiva sempre fosse muito restrito. Clonar um ser humano por meio da transferência nuclear de células somáticas, por exemplo, requereria envolvimento da pessoa doadora, que seria clonada; da pessoa cujos ovócitos fossem enucleados e, então, fundidos com o núcleo da célula doadora; da mulher que engravidaria e daria à luz a criança; e da pessoa ou do casal que criaria a criança clonada. Diante dessa realidade complexa, é mais provável que, se a legislação forçasse os indivíduos a assumir os custos de suas próprias clonagens, o preço, por si só, inviabilizaria seu uso.

As perspectivas da clonagem reprodutiva sofreram um revés ainda mais importante quando se constatou que a baixíssima eficiência da clonagem, em várias espécies de mamíferos, não era devida a dificuldades metodológicas potencialmente contornáveis no futuro, mas que, na verdade, havia uma barreira biológica contra a clonagem. Essa barreira está relacionada com o fenômeno de imprinting genômico, ou seja, a dependência da expressão de certos genes da origem paterna ou materna dos mesmos. Os padrões de imprinting sofrem importantes modificações nos primeiros dias de vida embrionária e têm um papel fundamental no desenvolvimento correto do ser concebido. Acredita-se que o imprinting de células somáticas mamíferas interfere na desdiferenciação necessária para ativação de genes embrionários, levando às altas taxas de falhas da clonagem. O sucesso de desenvolvimento atinge apenas de 1% a 5% das transferências nucleares e, mesmo assim, observam-se anormalidades de desenvolvimento associadas a defeitos de imprinting, o que resulta em aumento considerável da morbidade e mortalidade de fetos clonados.

Por essas razões, no dia 22 de setembro de 2003, a Interacademy Panel (IAP), uma rede global de Academias de Ciência, liberou um documento*, assinado por 63 academias, no qual afirmava: “Assim sendo, mesmo numa base puramente científica, seria bastante irresponsável para qualquer pessoa tentar fazer clonagem humana reprodutiva, dado o presente estágio do conhecimento científico” e “deste modo, conclamamos todos os países do mundo a banir a clonagem reprodutiva de seres humanos”. Apesar dessas recomendações, a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu, no dia 6 de novembro de 2003, por 80 votos contra 79 (mais 15 abstenções), apoiar uma proposta do Irã de adiar por dois anos qualquer decisão banindo a clonagem reprodutiva.

Às vezes, procedimentos desenhados para um certo fim específico provam, até inesperadamente, que são muito mais úteis em outras áreas. Descobertas mais recentes permitiram vislumbrar uma área de aplicação muito mais promissora para a clonagem humana na área médica do que a clonagem reprodutiva: a produção de tecidos humanos para autotransplantes.

Células-tronco embrionárias têm a capacidade de se diferenciar em qualquer tipo celular e podem ser produzidas a partir de embriões humanos em um estágio bem inicial de desenvolvimento. Isso significa que as pessoas poderiam fornecer suas próprias células e, ao usá-las para substituir os núcleos de seus próprios ovócitos ou de ovócitos de doadores, criar embriões clonados e obter células-tronco em cultura. Há, mesmo, a possibilidade de que ovócitos bovinos possam ser utilizados neste processo. De qualquer maneira, essas células poderiam, então, ser induzidas a se diferenciar em cultura, permitindo o implante de células e tecidos individualmente desenhados sem os problemas atuais de rejeição, que afetam o transplante. Esse protocolo constitui a “clonagem terapêutica” e a medicina baseada nele tem sido chamada de “medicina regenerativa”.

Os primórdios dessa idéia resultam, principalmente, de estudos sobre a doença de Parkinson. Essa é uma doença degenerativa humana em que os neurônios de uma determinada região do sistema nervoso central param de produzir um neurotransmissor muito importante chamado dopamina, causando uma variedade de sinais e sintomas neurológicos, principalmente tremores. Estudos clínicos mostraram que neurônios dopaminérgicos obtidos de embriões humanos transplantados no cérebro de pacientes com doença de Parkinson podem sobreviver, fazer conexões funcionais e corrigir, pelo menos parcialmente, os sintomas da doença. Entretanto, para obter resultados significativos, um número muito grande de neurônios – da ordem de 100 mil a 150 mil em cada lado do cérebro – precisa ser transplantado. Para se obterem essas quantidades de neurônios são necessários, pelo menos, de três a quatro embriões humanos. Contudo, já foi demonstrado que é possível dirigir, in vitro, o desenvolvimento de células-tronco de ratos para produção de neurônios dopaminérgicos, que podem, então, ser usados para terapia de ratos com doença de Parkinson.

Joacélio Batista da Silva

Teoricamente, o mesmo princípio desse tratamento da doença de Parkinson poderia ser aplicado a uma grande variedade de outras doenças degenerativas humanas, como diabetes, distrofias musculares, infartos do miocárdio, etc. Por exemplo, já foi demonstrado que, em camundongos com distrofia muscular, a injeção de células-tronco de animais normais resulta na incorporação de células doadoras no músculo e restauração parcial da expressão do gene afetado. No entanto a aplicação desses tratamentos em humanos faz emergir um grande problema: a rejeição imunológica. No caso da doença de Parkinson, a rejeição imunológica das células transplantadas não é um problema, porque o cérebro é um sítio imunologicamente privilegiado, onde rejeições não ocorrem. Porém, se usarmos o transplante de células-tronco para tratamento de doenças humanas comuns, poderemos esperar rejeição imediata, levando ao fracasso do tratamento. Como evitar isso? A clonagem fornece a resposta. Se fizermos a clonagem de um indivíduo até o estágio de embrião, poderemos ter uma rica fonte de células-tronco imunologicamente compatíveis para a medicina regenerativa.

Esse procedimento apresenta dificuldades práticas, porque ainda não conhecemos os fatores de crescimento necessários para induzir a diferenciação das células tronco em cada um das centenas de tecidos do corpo humano. Por isso, serão necessários muitos anos de pesquisa antes do emprego clínico da clonagem terapêutica. O documento de 22 de setembro de 2003, da Interacademy Panel, termina com um forte endosso: “Assim sendo, a clonagem para fins terapêuticos e de pesquisa possui um potencial considerável dentro de uma perspectiva científica, devendo ser excluída do banimento da clonagem reprodutiva”.