Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

Comportamento

Rebeldia em causa

Projeto da Psicologia ajuda pais e filhos a superarem conflitos do cotidiano

Trabalhar as relações entre pais e filhos naquilo que elas têm de mais problemático é a base do programa de “treinamento de pais”, que fez mudar o relacionamento entre Eliane e Aristides da Silva e o filho Tiago, de seis anos. O casal participa de um grupo de pais que investe na possibilidade de tornar menos conflituoso seu dia-a-dia com as crianças. “Eu não sabia pedir ‘por favor’. Agora, nós dois (ela e Tiago) sabemos o quanto isso é importante”, diz Eliane.

Esse é um dos projetos desenvolvidos pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND), do Departamento de Psicologia da UFMG. Iniciado em 2000, como piloto, no Aglomerado da Serra – núcleo de favelas da região Centro-Sul de Belo Horizonte –, foi aplicado, nos últimos dois anos, na Escola Municipal Maria das Neves, no bairro São Lucas, Zona Leste da Capital. “O programa, tal como implementado no LND, resulta de adaptações de um modelo norte-americano associado a uma metodologia de treinamento de pais desenvolvida na Universidade de São Carlos”, comenta o professor Vitor Geraldi Haase, coordenador do Laboratório.

Alan Fontes Borges

Linguagem própria

Segundo Haase, nos Estados Unidos, havia muitas dúvidas quanto à adequação desse modelo de intervenção, baseado em valores da classe média, para famílias oriundas de outros contextos étnicos e culturais. “Essa era uma das principais questões que nos motivaram a adaptar o programa para trabalhar com comunidades carentes no Brasil, ou seja, saber até que ponto a metodologia poderia funcionar”. A experiência recente responde a essa pergunta. Durante 2002 e 2003, a psicóloga Maria Isabel Pinheiro, voluntária no LND, formou quatro grupos de pais – somando 55 pessoas, preponderantemente mães – e trabalhou com eles métodos de interferir positivamente na relação com os filhos.

O programa de treinamento desenvolvido por Maria Isabel, e que será objeto de sua dissertação de mestrado na Universidade de São Carlos, foi montado para populações carentes e adaptado a uma comunidade específica, tendo como preocupação o uso da linguagem própria ao meio. “Todo programa de treinamento tem que estar sintonizado com a demanda”, lembra ela.

As crianças afetadas por comportamentos inadequados, explica Maria Isabel, são tratadas, nesse caso, por meio de uma mudança induzida nas atitudes dos pais. O mau comportamento infantil pode ser caracterizado tanto por crises de birra e agressividade, ausência de disciplina, quanto por hiperatividade. A família é orientada e treinada para lidar com esses problemas e, também, para impedi-las ou, pelo menos, diminuir os conflitos nas relações. Os pais seguem nove “passos” ditados pela psicóloga durante nove semanas. Por meio desses “passos”, eles vão aprendendo a reconhecer os problemas e a agir diante deles.

Questões éticas

Contudo, a despeito do êxito da metodologia, uma intervenção comportamental como a realizada no Aglomerado da Serra levanta, também, questões éticas, que precisaram ser respondidas pelos responsáveis pelo projeto. Por exemplo: os pesquisadores não estariam, eventualmente, induzindo comportamentos tidos, previamente, como positivos em comunidades que talvez adotem valores diferentes dos seus?

“De fato, foi observada repetidamente uma discrepância entre os valores preconizados pelo programa de treinamento de pais, quais sejam, uma disciplina baseada no elogio e no incentivo – pedagogia do incentivo –, em vez da tradicional pedagogia da punição. Em muitos casos, principalmente em famílias com nível educacional muito baixo e/ou com psicopatologias associadas, foi constatada a alta prevalência de crenças relacionadas com a necessidade de punir os filhos, equacionando educação com uma disciplina rígida, etc.”, argumenta Haase.

Mas, segundo ele, “o programa objetiva justamente convidar as famílias a experimentarem, na prática, a eficácia de um outro estilo disciplinar, baseado no envolvimento, supervisão e incentivo da criança. O estilo disciplinar proposto é mais trabalhoso e constitui-se em um desafio para muitos pais”.

Mais, ainda segundo Haase, “o principal argumento no que se refere à autonomia do cliente no treinamento de pais tem a ver com o fato de que uma família enredada em conflitos fica privada do poder decisório, presa em interações coercitivas. À medida em que o treinamento ajuda as pessoas a romperem o ciclo vicioso dessas interações coercitivas, em que os pais tentam controlar, sem sucesso, o comportamento dos filhos e vice-versa, as partes interessadas se tornam mais livres para decidir como querem viver”.

Alan Fontes Borges

Recreio especial

De acordo com a metodologia do LNC, durante as nove semanas de treinamento, os pais dedicam-se a práticas simples, como o “recreio especial”, em que devem brincar com o filho durante um período curto, mas predeterminado. Essa atitude, afirma Maria Isabel, ajuda a criança a compreender que os pais não lhe dão atenção apenas durante as crises de mau comportamento, como elas podem acreditar. No treinamento de obediência, estimula-se o comando dos pais, ou seja, a forma como eles devem dar as ordens aos filhos para serem ouvidos. Na relação com a escola, a família é despertada para importância desse espaço no desenvolvimento da criança.

“É muito comum”, diz Maria Isabel, “os pais valorizarem mais as atitudes negativas dos filhos e não perceberem que, às vezes, um ato que incomoda pode revelar, em algum aspecto, uma atitude muito positiva”. A análise dos dados coletados durante a execução do programa de treinamento mostrou a mudança de percepção e de atitude dos pais diante dos problemas identificados por eles mesmos.

Quando iniciavam sua participação no programa, os pais respondiam a três questionários. As mesmas perguntas, reapresentadas no final do programa, serviram de comparação para identificação da mudança, ou não, de comportamento de pais e filhos. De acordo com Maria Isabel, a diferença positiva foi claramente explicitada nos resultados do projeto, pois, praticamente, todos os itens analisados como de mau comportamento sofreram quedas nas graduações em relação ao grau de dificuldade de se lidar com eles e, também, na identificação da situação como problema.

A explicação, diz Maria Isabel, está no fato de que os pais passaram, ainda, a perceber melhor os filhos. “O que não era tido como problema foi identificado, durante o programa, como tal. Mas, ao mesmo tempo, os pais souberam lidar melhor com a situação”, argumenta.

Avaliações

Para a família de Tiago Oliveira da Silva, a diferença na qualidade do relacionamento com o menino ficou evidente. Seus pais, Eliane e Aristides, sempre foram juntos às reuniões, o que não era nada comum nos grupos. “Meu marido gostou tanto, que também não faltou a nenhuma reunião. Mesmo quando chegava em casa cansado, ele ia comigo”, recorda. Eliane avalia-se como uma pessoa nervosa e diz que acabou transmitindo sua agitação para o filho.

“Era uma mãe muito estressada e acho que eu mesma o deixava nervoso”, admite. Ela acredita que participar do programa de treinamento lhe deu “mais paciência e compreensão” para educar o garoto. “Eu nunca pedia ‘por favor’ e ele também não. Na hora do banho, era sempre briga. Agora, ele mesmo olha para o relógio, vê que está na hora e me chama”, conta.

“Obviamente a metodologia de treinamento de pais não constitui nenhuma panacéia, ou solução milagrosa para conflitos sociais e familiares. Ao contrário, tem diversas contra-indicações, que foram avaliadas por meio de questionários e entrevistas, antes do inicio do programa, e por meio de entrevistas com as famílias desistentes, após o encerramento do programa”, comenta o professor Victor Haase.

Mas, segundo avalia, “as principais contra-indicações se relacionam com famílias cujos pais não estão dispostos a investir seu tempo, energia e afeto na educação dos seus filhos, seja porque estão muito envolvidos com sua carreira profissional, seja porque apresentam problemas pessoais relacionados com psicopatologias, tais como alcoolismo ou depressão, seja porque cultivam outros valores”.

Haase finaliza afirmando que “o treinamento de pais, na medida em que procura implementar uma disciplina baseada no diálogo, no envolvimento com a criança e na supervisão de suas atividades pelo adulto, não corresponde a nenhuma forma de ‘adestramento’. Longe disso. Ao contrário, o que procuramos fazer é promover a autonomia, tanto de pais quanto de filhos, ou seja, distensionar conflitos, convidar as pessoas a refletirem sobre as conseqüências dos seus comportamentos, experimentar as conseqüências de comportamentos novos, tais como não punir e incentivar, e observar os resultados: se isso piora ou melhora o comportamento das crianças; se isso contribui, ou não, para distencionar as relações familiares”.