Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

Teatro

Arte que liberta

Trupe explora dimensão social do ofício de representar

A escolha de Bertolt Brecht pode ser considerada uma união perfeita. Afinal, para eles, o autor alemão traduz a essência da arte de representar: uma clara definição de que o teatro é não apenas entretenimento mas também uma ação política e social, um momento de troca entre atores e espectadores, que incorporam suas inquietações para um mergulho na reflexão.

Foi a partir dessa convicção que o Grupo de Pesquisa Prática em Atuação (Grupa), formado no curso de Artes Cênicas, da Escola de Belas-Artes, estreou Nossa Pequena Mahagonny, espécie de hipertexto apoiado numa adaptação do original de Brecht, Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny.

Quando encontrou no dramaturgo alemão motivo para montar, pela terceira vez, um espetáculo, o Grupa já sabia o que queria. “Foi uma escolha muito coerente com a nossa proposta. Brecht é muito mais do que um autor, é um teatrólogo que incorpora simbolicamente o teatro como agente social”, diz a professora Bya Braga, atriz, coordenadora artística e idealizadora do Grupa. “O que o Grupa quer é promover uma conversa com o público. Para nós, a arte tem uma função social: somos um grupo que quer se encontrar com outro grupo, o público, a quem não queremos tratar simplesmente como consumidor”, explica.

Voz de todos

As preocupações do Grupa refletem sua origem. Criada há três anos para ser um núcleo experimental e de pesquisa, a companhia foge das fórmulas, mas segue o fio condutor da “criação artística como metodologia para a aprendizagem técnica”. Para o Grupa, a via criadora se referencia na história do teatro, um caminho milenar que registra inúmeros processos e experiências, até chegar ao momento atual, que apresenta como uma de suas especificidades o fato de os grupos teatrais não se limitarem a ser um elenco de atores, mas ter, também, músicos, figurinistas, iluminadores e técnicos como integrantes.

Para não ser banalizado, o processo colaborativo, que se retrata como diferença estética no trabalho, precisa da referência histórica, acredita Bya Braga. “Libertar o ator é dar a ele condições de ser um criador, de ser mais autoral e, por isso, também um compositor”, argumenta. No teatro, esse processo não amadurece de uma hora para outra. Muito menos no Grupa, com sua formação tão recente, pois o “olhar para o coletivo” é uma face de outras trajetórias que, no Brasil, nas décadas de 60 e 70, ganhou forma no Teatro Oficina, de José Celso Martinez, e no Teatro de Arena, de Augusto Boal.

Jaider Laerdson

Ter voz, integrar o grupo como um todo e não com papéis predefinidos, foi o que motivou os cinco integrantes do Grupa na sua trajetória, lembra a atriz Rita Maia. Há dez anos, bem antes de entrar para o curso de Artes Cênicas, ela já fazia teatro em Belo Horizonte. “Era uma atriz que só recebia ordens, não tinha liberdade de criação”, recorda. Para Rita, a maneira de trabalhar do Grupa não condiciona apenas a formação do ator, mas interfere na relação do teatro com o espectador e do espectador com o mundo.

Esse princípio foi aplicado à montagem, realizada pelo Grupa em 2002, de Os cupins, uma recriação de Carta aos atores, do francês Valère Novarina. “Escolhemos montar Os cupins porque o texto tem uma relação muito íntima com o que estávamos vivendo, que era a descoberta da linguagem do ator”, exemplifica a atriz Juliana Coelho, ao comentar a opção que fizeram em se conhecer também por intermédio das peças.

Mas, se o exercício do conhecimento mútuo é imprescindível para o grupo, mais ainda o é a ousadia de encarar como ofício a relação provocativa com o público, uma relação que instiga e espera reações inesperadas.

Apesar da intenção experimental, típica do ambiente em que nasceu, e de uma tendência orgânica, que leva ao constante questionamento do grupo sobre o seu fazer e o seu dia-a-dia, o Grupa quer remar na direção de uma “atitude cênica crítica”. “Queremos levar o outro a refletir”, sustenta o ator Leonardo Lessa.

Também por essa razão, o Grupa tem preferência pelo espaço aberto para suas encenações. As duas primeiras montagens – No país da gramática, de Oswald de Andrade, e Os cupins – foram levadas na rua, enquanto Nossa pequena Mahagonny estreou no pátio do Centro Cultural da UFMG.

A força das ruas

“Na rua, no espaço aberto, a platéia não é submissa. O ator está em risco, o espectador se manifesta”, lembra Bya Braga. “Nunca se sabe o que vai acontecer, como os espectadores vão interferir, mas isso é tudo o que queremos, porque desejamos a conversa e fazer com que as pessoas pensem sobre o que estão vendo”, insiste.

A intenção do Grupa de refletir sobre a arte pela práxis resultou na opção de se apresentar sem a cobrança de ingresso. “Buscamos a rua e os espaços alternativos porque eles não são mediados pelo dinheiro”, justifica Bya Braga. Além disso, ressalta ela, “o teatro comercial não é exatamente a atividade ideal para a experimentação”.

Por isso, o Grupa pleiteou e recebeu, em 2001, recursos da Fundação Mendes Pimentel (Fump) para suas atividades. “Esse dinheiro foi fundamental para que pudéssemos prosseguir, mas também foi importante a Universidade reconhecer que precisava estimular o tipo de pesquisa feito pelo Grupa”.

A coordenadora artística assinala que outros grupos se vêm formando no curso de Artes Cênicas, o que demonstra o quanto o apoio da instituição motiva as experiências práticas. É impossível, observa Bya Braga, projetos de grupos acadêmicos de teatro competirem com centenas ou milhares de projetos de ciência e tecnologia submetidos às agências de fomento. “A Universidade tem que entender isso quando se propõe a ter um curso de Artes Cênicas”, defende.

Entretanto, como os recursos da Fump não se repetiram no ano passado o Grupa partiu para a busca de outras fontes alternativas de financiamento e candidatou-se, com sucesso, ao Fundo Municipal de Incentivo à Cultura.

O declínio de um império virtual

Nossa pequena Mahagonny é fruto de uma recriação coletiva do texto de Brecht, orientada por Bya Braga. A peça trouxe novidades que refletem o amadurecimento da trupe. Pela primeira vez, ela foi dirigida por um profissional externo ao grupo, o professor de interpretação dramática Lenine Martins, do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado.

Antes mesmo de estrear em Belo Horizonte, em novembro passado, a peça foi apresentada em Berlim, na Alemanha, durante o Simpósio da Sociedade Internacional Bertolt Brecht. “Foi uma experiência muito interessante, porque tivemos a oportunidade de avaliar, junto às suas origens, a dimensão provocativa do trabalho de Brecht”, diz Bya Braga.

Escrita no final da década de 20, Ascensão e queda da cidade de Mahagonny mostra um mundo corrompido pela idéia de que o dinheiro compra liberdade e felicidade, valores tratados como produtos disponíveis numa prateleira de supermercado. Na recriação, o personagem Paul Arckemann transforma-se em Paulo da Lasca e o entrecho é transferido de Mahagonny, uma cidade de ilusões ameaçada por um furacão, para um programa de televisão.

“Em Brecht, a discussão sobre a cidade é muito importante. O que fizemos foi adequar Mahagonny à ‘cidade’ virtual de hoje”, salienta Bya Braga, ao lembrar que a arte cênica contemporânea é fortemente impregnada pelo paradigma da televisão.

A peça é uma crítica debochada e severa aos valores – ou à falta deles – nos tempos atuais. Paulo da Lasca “se lasca” diante das câmeras e de milhões de espectadores ao se render ao dinheiro. Segundo Bya Braga, é um texto que polemiza sobre a vida feita de corrupção, o simulacro da felicidade e o parasitismo. “É um embate de valores o tempo inteiro”, resume a atriz e professora.