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Relato

Diante do desafio de conversar sobre o lugar da família e dos amigos de uma pessoa em sofrimento psíquico grave, compreendemos que essa fala deveria vir de quem tem um saber para comunicar – um saber que vem da experiência de ser em família.

Convidamos Leida Maria de Oliveira Uematu, familiar membro da Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental (ASUSSAM – MG), para escrever sobre como perceber e ajudar uma pessoa em situação de grande sofrimento. Ela conta que foi sua irmã, Emilha, quem a convidou para, junto com ela, fazer sua caminhada de militante do tratamento em liberdade, na ASUSSAM.

Com a sabedoria construída no dia-a-dia, em sua condição de familiar e de militante dos movimentos sociais antimanicomiais, ela nos presenteou com essa delicada e consistente narrativa.

Mas, no geral, como cuidar?

Como perceber a pessoa, seu familiar e o sofrimento dela? Perceber… a gente só sabe se ouvir mesmo, sabe! É o ouvir, mesmo. É o ouvir quando ele(a) fica mais quieto, por exemplo. Tem aquele(a) que numa crise fica mais quieto. É prestar atenção nos atos. É ver… ver e ouvir o outro. Isso é importantíssimo!

Então, você identifica; vê. Depois que você identificou, calma… a calma e a tranquilidade para ver que o transtorno mental é uma enfermidade como qualquer outra enfermidade. Tem que ser assim. Não pode se assustar. Sabe, é difícil! Mas não pode se assustar.

Depois que você percebe o outro, ouve o outro… e daí você trata com naturalidade… Você respeita o outro. Aquele sujeito, naquele momento, tá precisando de um acolhimento diferente. O que é esse acolhimento? É ser infantilizado? Não. Estou pensando, no caso, em adultos, né. Não, não tratar ele(a) com uma criança. Não, não é isso. Sempre com respeito: respeito às suas vontades.

O melhor acompanhamento, a melhor maneira, às vezes, de ajudar, é indireta.

Saber que ele(a) tem vontade, ele(a) tem opinião, ele(a) tem desejos, ele(a) sabe falar! Não tira isso dele(a): a fala! E ele(a) também sabe. Muitos falam: a gente não pode esquecer que eles, assim, tem problema mental, mas não são burros. São pessoas. Então, saber respeitar isso, e não impor o seu desejo, a sua opinião como familiar.

Não falar assim: ‘Nossa, ele era tão inteligente, tão bonito ou bonita, tem tanta capacidade e agora, tá aí, assim’. Não… ele vai continuar tendo a sua capacidade, a sua beleza… É só ver agora com outro olhar! E você vai ver: isso vai mudar o seu olhar. E o primeiro de tudo é não exigir que ele(a) seja igual a um antes ou ao que você quer. Bom, é isso que a gente percebe no outro.

Quando ele não quer ajuda, né, não sabe reconhecer que ele precisa de ajuda, então, ok. Faça sua ajuda: vai percebendo… se aproxima, porque não pode é se afastar, mas mantém sempre essa coisa de não se impor. É natural… é difícil mas, a gente tem que chegar no ponto, sabe, do sofrimento mental ser tratado como uma enfermidade qualquer… cardíaco, diabético, hemofílico… ou qualquer outra.

De tudo isso, o mais importante hoje, que já tem Serviços de Saúde Mental para tratamento em liberdade pelo SUS, né? É entrar para o serviço e acompanhar. Gente, isso é importantíssimo! O melhor acompanhamento, a melhor maneira, às vezes, de ajudar, é indireta. Ao invés do familiar ficar em cima da pessoa que está em crise… Não! Vai conhecer os Serviços de Saúde Mental, se aprofunda na Rede e vai conhecer como que é isso, como é que funciona isso. Ver essa história, ver como é que funciona e vai procurando entender o que é o transtorno mental. Esse, eu acho, que é o melhor ponto para tentar ajudar. Eu acho que pode ser até o mais fácil, não sei… não sei se existe mais fácil, mas pode ser: ao invés de você direcionar o tratamento entendendo que você está diante de uma pessoa que está precisando de tratamento… não, inverte.

Cuida de você. Cuida da sua saúde mental. Vai se conhecer, porque você estando bem, cuidando da sua saúde mental, você tem o seu equilíbrio e passa a respeitar tudo isso: ver o outro, respeitar o outro, porque você está bem, entendeu? Então, faz o inverso: ao invés de você querer que o outro vá se tratar, deixa ele na vida dele, do jeito dele e vai você fazer um acompanhamento, uma terapia. Vai descobrir você, né, que é bem legal! E descobrir a RAPS [ela refere-se à Rede de Atenção Psicossocial do SUS].

Eu, fazendo assim, eu acho que eu me olho mais. Principalmente agora, acompanhando a reunião para construção do 18 de Maio virtual, você fala assim: ‘Nossa, essas mulheres, essas cabeças pensantes, que estão aí desde o início da Reforma Psiquiátrica. Eu, penso assim: Gente, é um privilégio muito grande da minha parte conviver com essas mulheres, ver essa história… Eu estou chegando [nos movimentos sociais da Luta Antimanicomial] 30 anos, um pouco mais de 30 anos, depois de tudo, mas ainda é sempre tempo de…

Me emocionei, constata Leida.

Eu voltei e ouvi tudo o que eu disse até aqui…. para ver se dá para entender. Eu acho, assim, me emocionei porque é realmente apaixonante. Sabe, eu sei que nem todos vão se apaixonar, entrando aí para os movimentos sociais e conhecendo os serviços de saúde mental do SUS. Mas, talvez, não precisa se apaixonar, mas, pelo menos, conhecer… tem que conhecer o SUS!

Conhecer os Centro de Convivência, os CERSAM’s [Centro de Referência em Saúde Mental, serviços da RAPS de Belo Horizonte] e as propostas desses lugares. Conhecer a rede e daí ir procurando se inteirar sempre… Ir em palestras, ouvir muita coisa sobre o adoecimento mental e ir conhecendo.

Tem um pai [de um usuário de serviço da RAPS de BH] que acompanha o filho. Apesar de ter mãe, tem uma relação de muito conflito com o filho. Então, quem acompanha é o pai. Eu fiquei sabendo, recentemente, que esse pai, ele estuda demais! Ele lê muito sobre o que o filho tem. Então, ele é muito tranquilo! Porque ele não exige nada do filho: essas mudanças… ele não exige. Ele só acompanha o filho e pronto! Ele fica, assim, querendo, realmente, respostas. Isso não tem jeito, mas, não cobra do filho.

Tem uma outra coisa… o relacionamento em casa… não tirar autonomia dele(a), né. Não tirar, não só em casa, mas em lugar nenhum. É deixar que ele(a) continue fazendo todas as coisas [do dia-a-dia]. Ele(a) tem que fazer. Servir seu próprio prato, por exemplo. Se derramar, limpa, né. Mas não precisa ser você também a limpar. Pede! Fala assim: ‘Quando derramar, não tem problema. É só você pegar um pano ou papel e limpar. Não se preocupa!’ Não ficar de cima, sabe. Chamar para participar: se é para ajudar na cozinha, ver o quê que ele(a) pode fazer. Se há uma reunião, um grupo, todo mundo sentado, chama ele(a) também para participar. Todo mundo tem direito à fala e que ele(a) também tenha a fala dele(a). Deixa ele(a) falar! E se ninguém conseguiu acompanhar ou entender? Ok. Se você consegue formular uma pergunta pra entender melhor, pergunta. Se não, começa um outro assunto e a conversa continua, mas ele(a) também tem que estar na roda! Sempre com muito respeito.

Não excluir, em momento algum. Não excluir de encontros ou momentos com a família: seja um grande evento, uma festa chiquérrima ou um simples almoço. De forma alguma excluir! E é sempre do jeito dele(a). E pode ser que ele(a) não se vista de forma adequada. Você vai ver que isso daí, é insignificante! Se no caso for uma coisa chique e ele(a) não estiver vestido(a) ‘igual ou à altura’ daqueles… daquelas roupas chiques… não tem problema! Está aí a pandemia para nos mostrar que nada disso tem valor!