“Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde. Mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” (Machado de Assis)
Na atualidade vivenciamos um aumento das depressões, o que é apontado em relatório da OMS (2015) pelo percentual de 18,4% na década 2005-2015. Segundo esse relatório, cerca de 4,4% da população mundial sofre pela depressão, o que corresponde a 322 milhões de pessoas. O Brasil aparece com 5,8% de sua população afetada.
Desânimo, ausência de prazer na realização de atividades cotidianas, sentimento de vazio e de inutilidade e falta de sentido na vida são características de quadros depressivos. Mas, para além de dizer respeito ao sujeito e sua história, que possui suas razões para estar sofrendo, o aumento das depressões no século XXI, demonstra que algo não vai bem na sociedade contemporânea.
Abordar o tema da depressão pela perspectiva de que ela é um sintoma social nos leva a pensá-la como um sinalizador do mal-estar provocado pela cultura. Nesse sentido, Dunker (2016) defende que as nossas relações com o trabalho (e podemos entender também com os estudos), as cobranças do mundo capitalista e a forma com que vamos nos interligando ao que nos é posto pode nos levar ao sofrimento. Para ele, o sofrimento diz respeito às nossas relações com os outros. Ele não é individualizado, sendo uma evidência disso o fato de que a depressão está entre as principais causas de afastamento no trabalho.
São também indicadores do mal-estar que vivemos: a nossa relação com o tempo - cada vez mais escasso para a produtividade a que nos obrigamos -; com as cobranças sociais e familiares; as relações muito competitivas; o excesso ligado ao consumo e a diminuição da reflexão sobre as experiências subjetivas. Paulinho da Viola ilustra bem esse desencontro com o tempo acelerado e impaciente em sua canção, “Sinal fechado”:
“Tudo bem, eu vou indo, correndo
Pegar meu lugar no futuro, e você? (...)
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios (...)
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas (...)”
Para Kehl (2009), a depressão não se confunde com estados de ânimo como a tristeza, o desânimo e a falta de desejo com a vida. Ela também não se confunde com ocorrências de lutos e fracassos situacionais. Mas, sim, se configura em um profundo abatimento e sentimento de vazio e inutilidade, uma lentidão corporal e mental, em que a falta de sentido impera, fazendo com que a vida pareça não valer a pena. Tudo isso se agrava pela falta de empatia com que nossa cultura trata os depressivos, transformando a depressão na “mais inconveniente expressão do mal-estar psíquico”, pois ela desafina o “coro dos contentes” (KEHL, 2009, p. 23).
Além da aceleração da vida cotidiana, outra característica da sociedade contemporânea é a imposição de estados de felicidade. O sujeito vive uma obrigação de ser feliz conforme um imaginário social hegemônico veiculado pela mídia e publicidade. A felicidade, sob essa ótica, passa a ser mais uma mercadoria que pode ser adquirida e, além disso, deve ser ostentada nas redes sociais em cenas de alegria e prazer. Quando o sujeito é capturado por esse imaginário social, sua singularidade é apagada (KEHL, 2017).
É ao que Moretto (2016) remete ao dizer que a sociedade do consumo e a lógica capitalista produz o apagamento do sujeito, da sua singularidade. Considerando que a subjetividade se constitui e se modifica na relação com o outro, no laço social, teremos pistas para se pensar a dor e o sofrimento que cada um sente a partir da relação entre a subjetividade e as mudanças da ordem social, política e econômica de uma época.
Sofrer faz parte do nosso viver e esconder o sofrimento leva ao apagamento do sujeito. Safatle (2015) remete a ideia de sofrimento a um impulso fundamental à crítica, considerando que o sofrimento é algo que te lembra de tudo que não se enquadrou na forma de vida que você se insere. Para ele, tomar o sofrimento como patologia não seria uma forma adequada de tratá-lo.
Nessas perspectivas, podemos pensar que a depressão traduz as tentativas fracassadas de atender as demandas vindas do desejo do outro. Ela reflete um vazio de desejo do sujeito, que vem carregado de angústia. Diante dos apelos imperativos da sociedade, ela aparece de forma aterrorizadora, aumentando o sofrimento de quem está deprimido com o sentimento de culpa por não participar dos ideais vigentes de felicidade, competência e sucesso. Ideais esses que não comportam a tristeza e a dor do viver, e que não permitem abertura para pensar em delas extrair algum saber que pode nos preparar para a vida, que pode auxiliar na construção de outras referências para viver.
Alguns ideais interpretados imperativamente, como “tenha sucesso” e “seja feliz” podem ser geradores de angústia e depressão. E se esses ideais não são alcançados? Cada um precisa inventar saídas imaginativas para encontrar o sentido da vida.
O poema de Carlos Drummond, “Passagem da noite”, nos traz um alento: mesmo que “em noite nos dissolvemos”, após um passeio pela noite chegaremos na alegria do dia que surge, onde tudo se nos confia outra vez, concluindo que “O essencial é viver”.
Referências
WORLD HEALTH ORGANIZATION; Mental health action plan 2015 (FALTA ESSA REFERÊNCIA COMPLETA)
DUNKER, Christian. Qual é a relação da depressão com a modernidade? Falando nisso 59, 12 out 2016. Acesso em 09 mai 2020.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Editora Boitempo. 2009. 312p
KEHL, Maria Rita. Aceleração e depressão. Instituto CPFL, 16 nov 2017. Acesso em 08 mai 2020.
MORETTO, Maria Livia Tourinho. É Preciso Ser Feliz. Instituto CPFL, 10 jul 2016. Acesso em 09 mai 2020.
SAFATLE, Vladimir. Sobre a insatisfação pessoal e depressão na sociedade atual. Trecho do Programa "Café Filosófico - A lógica do condomínio com Vladimir Safatle", 04 set 2015. Acesso em 09 mai 2020.