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Política de saúde mental da UFMG: reflexões para tempos de ensino e trabalho remotos

Uma Praça de Serviços vazia é agora realidade em tempos de distanciamento social. Foto: Ewerton Martins Ribeiro / UFMG

O ano de 2020 chegou trazendo uma situação inimaginada: uma ameaça avassaladora mudou ritmos, compassos, modos de circular, de conviver, de falar, de habitar territórios. Naquele momento – e até o presente – a pandemia explicitou e acentuou questões globais, tais como as desigualdades ou o modo predatório de habitar o planeta, assim como fez emergir questões individuais, entre as quais destacamos o sofrimento psíquico. O cenário fez acentuar muito o que antes já se anunciava.

No mês de março, logo após a Universidade iniciar mais um ano letivo, sobreveio a necessidade de, em nome da segurança e da responsabilidade social, interromper as atividades presenciais. Ficar em casa tornou-se uma necessidade e uma forma de manifestar solidariedade a todos e a todas que não podiam deixar de sair diariamente. A abrupta intervenção na dimensão do tempo e do espaço, elementos tão fundamentais para as subjetividades, atingiu todos fortemente, em especial aqueles e aquelas que já viviam vulnerabilizados.

Nesse cenário, a saúde mental se destacou, dado o impacto que o distanciamento social causou na qualidade de vida das pessoas. Diante dessas mudanças radicais, muitos e muitas passaram a se preocupar com a saúde mental no contexto da pandemia. Começaram, então, a surgir as primeiras pesquisas nos países em que os problemas de saúde mental surgiram inicialmente, como a China, onde a depressão, a ansiedade e os sinais de estresse foram detectados na população em níveis muito elevados. Nesse contexto, a preocupação com a saúde mental das pessoas se justificou pelo crescente número de casos.

Há muito sabemos que a saúde mental – entendida mais como uma dimensão humana que envolve os modos como se vive e se relaciona, e menos como uma série de comportamentos ou sinais e sintomas de adoecimentos – não passou incólume nesse processo. Como seres humanos, dotados de um corpo com suas funções e necessidades, e como seres de afeto, afeitos aos encontros, em suas mais diversas formas, tudo o que perpassa o corpo, as relações, os afetos perpassa a saúde mental.

Inicialmente, na comunidade universitária, o medo, a insegurança, a falta de respostas e datas precisas de quando isso tudo ia acabar, de quando as aulas presenciais iriam ser retomadas, de como seria o primeiro semestre letivo de 2020, foram questões surgidas em meio a outras tantas. A imprevisibilidade de tudo, em tempos em que conhecer para controlar é um apelo constante (o que já se mostrou impossível em relação à pandemia ), tornou-se um elemento a mais nessa nau sem rumo.

Como seres humanos, dotados de um corpo com suas funções e necessidades, e como seres de afeto, afeitos aos encontros, em suas mais diversas formas, tudo o que perpassa o corpo, as relações, os afetos perpassa a saúde mental.

Aos poucos, algumas atividades na UFMG foram sendo retomadas, mas com a devida distância. Assim, os fóruns e espaços colegiados passaram a se reunir virtualmente. As tecnologias de comunicação a distância tornaram-se parte do cotidiano. As pessoas passaram a se ver – ou apenas se ouvir –, discutir, deliberar e encaminhar pelas janelas virtuais. Logo chegou o momento de iniciar o processo de ensinar e aprender, de exercer a função de servidor público, também pela janela. E onde já existiam inseguranças, medos, imprevisibilidade, entraram os desafios do aprender que deixaram de ser exclusivos de uma parcela específica da comunidade universitária para fazer parte do cotidiano de todos em trabalho remoto.

Novamente, vozes se levantam para questionar como fica a saúde mental das pessoas nesse cenário, pois é certo que as pessoas nesse contexto de grandes desafios encontraram, ou reencontraram, pelo menos mais um: o de lidar consigo mesmas e com suas dores, que, por vezes, não se traduzem em palavras. Em meio a tantas mudanças, a palavra “acolhimento” faz-se apropriada como resposta possível a essas vozes que externam a preocupação com a saúde mental da comunidade universitária. Esse acolhimento que já vinha sendo vivenciado, há muitos anos, em 12 unidades acadêmicas e que foi batizado de “Escutas Acadêmicas” serviram de embasamento e inspiração para que a Comissão Permanente de Saúde Mental propusesse um Dispositivo de Acolhimento a Distância (DAD). Esse dispositivo consiste na disponibilização de uma equipe capacitada para acolher, no sentido mais amplo que o próprio verbo comporta. Oriundo das práticas de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), o acolhimento, como dispositivo marcado por uma ética, uma estética e uma política, tem sido construído cotidianamente na UFMG, posto que o território no qual ele se dá é institucional, caracterizado por modos muito próprios de circular e de se relacionar.

Além de acolher e incluir as pessoas com seus sofrimentos, é necessário investir na construção de uma cultura de acolhimento, em que autoritarismo, individualismo, produtivismo sejam potentemente enfrentados.

Nos vários momentos em que a expressão saúde mental vem sendo empregada na comunidade UFMG, pode-se perceber que alguns elementos marcam compreensões diversas em relação ao seu significado. Por vezes, ela parece estar reduzida a uma relação com diagnósticos psiquiátricos e, assim sendo, a ação demandada é pela presença de profissionais especializados em número suficiente para atender a todos e todas, possibilitando-lhes resolver seus males. E essa é uma demanda legítima. Algumas dores, alguns sofrimentos só são aplacados com o apoio de profissionais especializados em saúde mental. Nos quase 20 anos da política nacional de saúde mental do Brasil, pode-se viver, construir e compreender que esse apoio e acompanhamento profissional, para ser efetivo, deve se dar num modelo de uma rede de atenção, com pontos de cuidados territorializados, capazes de construir cotidianamente o cuidado em liberdade. Essa rede existe e tem um consistente trabalho: trata-se da Rede de Atenção Psicossocial do SUS. Mas sabe-se também que há sofrimentos e dores com os quais os sujeitos conseguem lidar contando com ajuda de não especialistas, pessoas disponíveis para acolher e escutar, a exemplo do que fazem os Núcleos de Acolhimento e Escuta e a equipe do Dispositivo do Acolhimento a Distância. As pessoas que demandam esse apoio são em número maior do que as que requerem apoio profissional. Há também aqueles cujas dores e sofrimentos se mostram atenuados quando compartilhados com outros com quem se estabelece relações de apoio e afeto. E esses constituem maioria. É o que sugere a pirâmide do Comitê Permanente Interagências (IASC).¹

Compreende-se, hoje que, além de acolher e incluir as pessoas com seus sofrimentos, é necessário investir na construção de uma cultura de acolhimento, em que autoritarismo, individualismo, produtivismo sejam potentemente enfrentados. É preciso também contribuir para que as pessoas possam cuidar-se. Valorizar, buscar e resgatar elementos para uma convivência ética, menos hierarquizada, na qual as pessoas se disponham mais ao diálogo, contribui para a saúde mental. A problematização dos ritos próprios da vida acadêmica – como a avaliação, a orientação, a construção do conhecimento, as relações de trabalho, as ações de gestão – que considere os envolvidos como sujeitos e singulares também permeia a saúde mental.

Os tempos atuais, de distâncias, máscaras e ausência de contato físico pedem mais paciência e diálogo, consigo e com o próximo. Pedem flexibilidade, redimensionamento, repactuação, reflexão, invenção, leveza. Essas são disposições que não se “prescrevem”. A Comissão Permanente de Saúde Mental, com base nesse cenário de ações emergenciais remotas, selecionou algumas questões com o propósito de provocar discussões sobre as práticas cotidianas na universidade e a relação delas com a saúde mental. Resumidamente: cuidar para que o distanciamento social não se torne sinônimo de solidão; criar rotinas e, ao mesmo tempo, flexibilizá-las; buscar momentos para desconectar-se e vivenciar o ócio, impondo limites ao trabalho ou estudo. Que o cargo de chefia ou qualquer posição na hierarquia seja uma oportunidade para reconhecer que as limitações impostas por este momento são reais e que, portanto, volume de trabalho e prazos precisam ser repactuados conjuntamente. E que nas relações entre professores e estudantes, o diálogo e a flexibilidade sejam norteadores fundamentais. A Comissão ressalta, por fim, a importância de buscar apoio, sempre que necessário, e de compreender que uma universidade acolhedora é responsabilidade de todos e todas e uma importante direção da política de saúde mental da UFMG.

 

Texto da Comissão Permanente de Saúde Mental, assinado coletivamente por Alessandro Moreira Fernandes (Pres.); Adriana de França Drummond; Janaína Mara Soares Ferreira; Janaína Palmela de Oliveira; Luiz Phelipe da Silva Maia Carneiro; Maria das Graças Santos Ribeiro; Paula Maia Nogueira; Regina Monteiro Campolina Barbosa; Solange Cervinho Bicalho Godoy; Teresa Kurimoto.

 

¹ Comitê Permanente Interagências (IASC). Como lidar com os aspectos psicossociais de saúde mental referentes ao surto de COVID-19. Marcio Gagliato trad. Genebra: IASC. 2020. 15p. Disponível em: https://interagencystandingcommittee.org/iasc-reference-group-mental-health-and-psychosocial-support-emergency-settings/interim-briefing